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Crônica de uma noite de natal (não propriamente sobre o natal)

     


      Eu ando sempre pelo lado direito da calçada, mesmo quando existem enormes poças de água suja como obstáculos. Sinto-me mais protegida da ferocidade das pessoas apressadas, isso porque penso que caso um imprevisto aconteça, as paredes me servirão de amparo, sombra, camuflagem. Sou extremamente tímida. 
      Talvez essa minha psicose esconda uma característica forte de minha personalidade: escravidão da rotina. Acordo sempre no mesmo horário, cumprimento as mesmas pessoas, sento no mesmo assento do ônibus (quando já não está ocupado) e faço questão de ler os mesmos lambe-lambes, anúncios de cartomantes, grafitagens de jovens sonhadores com tendências socialistas... Eu me canso de mim todos os dias, mas ao mesmo tempo não crio forças para fazer algo diferente. O novo me amedronta. 
     Sou divorciada e tenho um filho com meu ex-marido. Não temos uma relação maravilhosa, mas sabemos sorrir ao falar um "oi". Eu ainda o amo,  e esse amor é um misto de dor, náusea e saudade. Saudade daquilo que um dia fomos, da pureza de nossos olhares e palavras. Náusea por todos os vícios revelados pela mesquinheza de um casamento. Dor por todas as feridas causadas pela falta de afinidade, pelo desgaste e acidez de velhos em corpos jovens. Ele não sabe disso. Eu nunca quebrei a rotina para contar-lhe. 
     É natal, mas eu não me sinto atraída por essas luzes, presépios e papais noéis. Perdoem-me, mas minha linha metódica não me permite ficar confortável em dias diferentes. Fora que tudo virou um grande leilão. De eletrodomésticos à sentimentos descartáveis. Eu só queria acordar no outro dia e pegar meu ônibus para a cidade. Sentir o cheiro de gasolina da segunda-feira. 
     Mas hoje é natal e a única coisa que me faz ter um pouco de felicidade é de saber que ficarei mais tempo com meu filho, mesmo que obrigada a estar no mesmo ambiente da mulher do meu ex-marido por um tempo. Pra completar, ainda tenho que fazer cara de surpresa no amigo oculto da casa dos meus pais, onde todos da minha família irão se juntar e me lembrar do quanto minha vida é infeliz, do quanto sou solitária e estou ficando pra titia. Eu os amo, eles devem me amar de alguma forma, mas tocar em assuntos indelicados e difíceis é, sem dúvida, lugar comum em todos os reencontros familiares.
      E ali está eu, naquela mesma pose de quem entende tudo, de quem supera tudo. Eu esboço sorrisos, finjo gostar da rabanada da minha mãe, simulo estar realmente interessada nas estórias de meu tio solteiro e minto quando meus primos mais novos me perguntam a idade. Sou um poço de sentimento de culpa, e acho o fim do mundo deixar alguém constrangido ou se sentindo mal. Como resposta, eu me transformo no centro das indiscrições e constrangimentos. Aguento tudo calada.
      De alguma forma tenho mais simpatia pelo Reveillon e sabe por quê? Porque é dia 31 e o outro dia já é ano novo. É um bilhete assinado pela vida dizendo: "Pronto. Encerramos sua cota de sofrimentos". Mesmo que seja uma baita de uma mentira. Mesmo que eu acorde com a cabeça doendo por tanto beber pra não doer as mandíbulas dos meus sorrisos forçados. Mesmo que eu saiba que eu tive a chance de contornar minhas dores, mas mesmo assim preferi tomar uma anestesia pra continuar vivendo. 
     Viver me dói, e eu me escondo em compromissos, relatórios e calçadas para não dar de cara com a má sorte de saber que poderia ter feito diferente e não fiz. Minha rotina é minha fuga. É como se eu fora uma escrava consciente de seu cativeiro que sente-se mais à vontade em sua jaula do que vulnerável à leões, mesmo que livre. 
     Estão me chamando lá dentro, acho que querem ver minha cara de bêbada para eu ser a piada da noite. Estou exausta e esse é meu estado de espírito. Não quero mais anestesia, porque não sei mais se a dormência é melhor que a dor de viver. Que droga! Estão gritando mais alto. Lá vou eu, cambaleando, com uma dor enorme no peito e um ódio eterno por dias festivos. 

Ah, antes que me esqueça: Feliz Natal.

LER AO SOM DE: UM DIA APÓS O OUTRO - TIAGO IORC