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LIVRAI-NOS DE GILEAD, AMÉM!



The Handmaid’s Tale (participei de um programa de podcast opininando sobre a série em uma perspectiva de mulheres cristãs, aqui no site do Redomas), a série premiada e cultuada pela crítica, do serviço de streaming Hulu, é difícil de ver, isso todos nós que acompanhamos já sabemos. 
Mas algo que aprendi nos últimos anos é que, por mais que as dores sejam compatíveis, nenhuma dor é igual a outra, todos nós existimos a base de rótulos que carregam em si pesos que historicamente nos remetem a dores diferentes.
Veja bem, somos todos iguais, não somos? A resposta, por mais que seja intrigante é a mais pura verdade: não somos. E tudo bem por isso, em essência, com o tanto que sejamos tratados igualmente e entendamos que nenhuma das nossas diferenças são instrumentos de crueldade. Mas a história do mundo nem sempre entendeu isso, e ainda não entende. Por séculos tínhamos estudos “científicos” que justificaram infanticídio em Roma, escravidão negra, assim como o antisemitismo baseados no darwinismo social e a opressão de mulheres sendo justificada por todas as esferas da vida humana, desde a ciência, filosofia até a teologia.

E dentro dessa história confusa que nos criou, existem os que estão dentro de rótulos que sofrem até hoje as consequências do resquício da supremacia humana baseada em alguma característica – a saber, o branco, homem, europeu, aqui no Ocidente. Eu faço parte de alguns rótulos que têm peso sobre minha existência: sou mulher, sou negra e... sou cristã. O “cristianismo”, permitam-me adicionar as aspas, desde que se casou com o Império e expandiu-se pelo mundo em forma de colonização e não evangelização, deixou de ser a religião baseada na pessoa de Jesus para ser um instrumento de poder. E poder é muito mais atrativo do que carregar a cruz de Cristo, o histórico e divino Cristo.
Agora imaginem habitar em um corpo que te coloca dentro de duas categorias humanas que historicamente foram pisoteadas e massacradas ao mesmo tempo em que, de todo coração, se tem um relacionamento com o Cristo do Cristianismo sem aspas e se convive com cristãos que tem um relacionamento com o Império e com o cristianismo com aspas? É doloroso.
Assistir Handmaid’s Tale, para minha experiência, é muito mais sofrível, sangrento e difícil porque eu vivo dores que me colocam em uma existência que foi negada e massacrada pelo cristianismo sem Cristo, pelo instrumento do Poder e não pelo Poder do evangelho; porque minha história dentro da sociedade é escrita pelos moldes de pessoas que lá trás utilizaram da minha tão amada confissão de fé para serem instrumentos de Satanás.
São essas camadas existenciais que me perseguem e que são colocadas no meu rosto a todo o tempo enquanto assisto Handmaid’s Tale. Para te situar sobre a história: a série é uma adaptação do livro “O conto da Aia” de Margaret Atwood, uma escritora canadense; acompanhamos, então a narrativa de Offred ou June, como é seu verdadeiro nome, uma aia que relata como os Estados Unidos sofreram um golpe de estado de uma seita cristã extremista e implantaram Gilead, uma nação baseada em interpretações do Antigo Testamento e de algumas passagens do novo. O motivo para a tomada de poder nos EUA se dá pela infertilidade das mulheres, o que é automaticamente entendido como castigo divino pela depravação humana, surgem então essas pessoas que decidem colocar as coisas em “ordem”, rejeitando toda a tecnologia, fazendo as mulheres voltarem aos seus “lugares” e matando todos os que quebram alguma regra que dizem ser bíblica.

As mulheres, que são o foco narrativo da história, são divididas em castas que, na verdade, são as expectativas que um homem ultra-conservador dessa seita cristã espera: casadas, aias e marthas. As mulheres casadas se vestem modestamente, só podem estar em casa e em lugares restritos e não se metem nos “assuntos” dos maridos comandantes, que decidem a vida política de Gilead; as Marthas são as que se dedicam à vida doméstica, são como empregadas e suas existências estão voltadas aos cuidados com o Lar; as Aias, são mulheres férteis capturadas que, antes do regime, viviam contra as regras de Gilead: foram amantes, divorciadas ou lésbicas. E é na perspectiva de uma aia que a história é contada. June, ou Offred (Of + Fred, que quer dizer “de Fred”, ou seja ela pertence à Fred Waterford, dono da casa em que foi enviada). A aia fica dentro da casa, vestindo um longo vestido vermelho e um chapéu que lembra cabresto, não pode olhar para os lados, não pode olhar nos olhos de nenhum homem, só pode falar baixo e em todos os meses são submetidas a um “ritual” em que os Comandantes, donos das casas, estupram-na após uma leitura bíblica do texto da concubina de Jacó. O que iguala todas as mulheres da casta é que todas estão abaixo do poder do Comandante, em Gilead nenhuma mulher pode dar sua opinião, escolher outra vida ou simplesmente ler, nem mesmo a bíblia, “regra de fé” da República; a punição para casos de qualquer uma dessas “normas” é a morte, apedrejamento ou amputação de partes do corpo (se alguém ver algo que não deve, deve-lhe ser arrancado os olhos, se tocou em uma bíblia e escreveu ou leu, os dedos ou mãos são cortadas). Aos homens é dado o poder de liderança, decisão e poder, inclusive de ler as escrituras e interpretarem como queiram.

É justamente nessa relação complexa com a história  do Cristianismo que a série me fere o peito. Todas essas opressões mostradas são, segundo a própria Margaret Atwood, colhidas de relatos de mulheres dentro da história, nenhuma tortura mostrada, nenhuma forma de opressão foi inventada pela escritora: todas existiram e existem em algumas partes do mundo (principalmente em países teocráticos com o Islã como religião oficial no Oriente Médio ou alguns países da África).
Com isso deixo claro que a mensagem da série não é contra o cristianismo, mas sim contra as diversas formas que uma ideologia usou para oprimir mulheres e endeusar o homem, utilizando, para isto a própria religião. Mas o que é que nos assusta tanto em Handmaid’s Tale? Por que temos a sensação de estarmos perto? Por que me causa angústia? Eu tentei explicar a partir de minha experiência como mulher cristã dentro do meu contexto

Em Gilead, mulher tem de se adequar às suas castas

Por que me assusto com essa parte da história? Mulheres são divididas em castas e são ensinadas a permanecerem lá (aqui parece o enredo de “Admirável Mundo Novo” outra distopia) e ainda a entenderem-se como transgressoras e não amadas por Deus se não cumprirem com sua sina. Dentro da igreja, alguns discursos parecidos são disseminados e entendidos como verdade por muitas mulheres: não posso pensar de forma diferente porque estarei transgredindo à vontade de Deus na minha vida. E para isso você se adequa aos moldes de alguns discursos: “o chamado da mulher é ser do lar”; “mulher não precisa de emprego, pois não tem o papel de ser provedora da casa” e dentre outros, mesmo com inúmeras passagens de mulheres trabalhadoras na bíblia e de um anacronismo hermenêutico que só pode ser utilizado com fins egoístas. Aqui não estou dizendo que uma mulher NÃO pode ser do lar, porque assim eu entro na mesma lógica: o que estou dizendo é que nossa identidade está em Cristo e o que fazemos tem de glorificá-lo, seja como dona de casa, seja como empresária, seja como solteira, seja como mãe.


Em Gilead, mulher não opina

            Já me dei, em meu crescimento com diversos discursos sobre a desqualificação da minha opinião pelo meu gênero, afinal, em uma conversa entre homens qual a utilidade da opinião feminina? Dentro de algumas igrejas, mulheres, em uma hermenêutica distorcida das palavras de Paulo são proibidas de falarem, e em casos mais amenos, em que parece que não é tão sério assim, suas opiniões não são tão levadas a sério para fins teológicos, de ensino ou estudo bíblico.       

        
               Em Gilead, mulher não lê

            Tá aqui uma das raízes mais polêmicas da série. Ler pode ser uma metáfora para o acesso ao conhecimento e, dentro do nosso contexto religioso cristão, ler é entrar no campo do estudo da Palavra de Deus, que é a Bíblia. É facilmente admissível no nosso século, ter mulheres estudando a bíblia, mas dificilmente se tem mulheres fazendo teologia, por ainda ser entendido como um campo para homens, afinal, para que mulheres fazendo teologia se este não é o seu “lugar”? Para que mulheres lendo em Gilead, se a função delas é se adequarem nas castas? O que Gilead e algumas igrejas esquecem é que restringir o acesso ao conhecimento das Escrituras, ouso dizer, é uma obra anticristã. Explico: quando Jesus morreu na cruz ele igualou todas as pessoas salvas com o direito de conhecer a Deus. Restringir o conhecimento dos estudos da Palavra é negar o que Cristo gratuitamente já deu. É querer mulheres como Marta, que estão dentro do que se entende como ideal, e desprezarem Maria, que é a elogiada por Jesus porque escolheu a melhor parte: conhecê-lo, mesmo quando no contexto apresentado, o escândalo de Marta fosse por Maria não estar assumindo o que era “papel da mulher” como dona do lar, mas aprendendo do Mestre, sendo discípula, em uma sociedade em que a mulher não valia nada e muito menos poderia ser alvo de ensino.



Com o sistema de castas, Gilead, dentro da narrativa da série tem um poder indestrutível porque estas mulheres entendem-se como inimigas e, de alguma forma, livres. Serena, uma das melhores personagens da série, é uma esposa que ajudou a construir Gilead sendo uma intelectual de opiniões “fortes” e que era tolerada no antigo EUA em nome da democracia. Seus ideais construíram Gilead, e como esposa sentia-se segura por ser “respeitada” pelos homens, afinal, as mulheres que sofrem e estão nas outras castas, merecem sofrer porque são “pecadoras”, estão fora da vontade de Deus. Nos últimos momentos da recente temporada, o que vemos é a derrocada da idealização de Serena e a percepção de que o sistema, tão almejado por ela, na verdade sempre foi contra ela.

A disputa feminina não é algo puramente construído por mulheres, é um instrumento de poder. É colocando nas nossas cabeças que, não sendo santas, no conceito de santidade que é mais cultural do que bíblico, algumas mulheres sim merecem o desrespeito, a falta de oportunidade, a humilhação e até o marido violento, afinal, é falta de fé, é porque não assumiu seu “lugar”, é porque não é mulher “virtuosa”.
No reino de Cristo, ao contrário do reino de Gilead, as mulheres são amadas, tidas como imagem de Deus, primeiras testemunhas de sua ressurreição, escolhidas como instrumento para abençoar o mundo com o plano de Salvação, ensinadas como um discípulo homem, ao pé de Cristo, hospedeiras de igrejas, líderes, co-implantoras de igrejas e missionárias. Mas há algo na lógica dos reinos que o próprio Jesus nos advertiu que tem de ser levado em conta: se um existe, o outro tem de ruir e que nessa briga de reinos, em nossas igrejas, em nossos corações, em nossa santidade, o Reino de Cristo venha e o de Gilead seja destruído para sempre.


Obs: Estou sentindo que provavelmente pessoas irão me chamar de liberal teológica, influenciada pela "ideologia" feminista, herege, não crente... então, para fins de discussão baseadas no amor e no respeito, estou disponibilizando links interessantes sobre como alguns discursos tidos como bíblicos podem ser, na verdade, ideológicos ou como você pode simplesmente respeitar minha opinião sem me condenar ao inferno por algo que não é essencial na fundamentação cristã:

  1. Women's Service in the Church: The biblical basis - NT Wright
  2. The Lies of "Biblical Gender Roles" - Tim Fall
  3. Ordenação Feminina - Podcast - Bibotalk
  4. Mulheres no Início do Cristianismo - Podcast - Bibotalk
  5. Paulo e as Mulheres - Texto por Alexandre Millhoranza
  6. Mulheres no início do protestantismo - Podcast por Bibotalk
  7. Marg Mowczo - Site oficia
  8. The Junia Project

DESPEDIDAS

"La despedida" - Gastón Castello

Ela ajeitou o sutiã e apoiou de forma não tão confortável os cotovelos naquela mesa. Sua língua assim como o resto do corpo gritavam para falar, mas o silêncio calava. Ali estavam as pessoas com quem tinha dividido quase cinco anos na fase da faculdade. Ali, no último dia de suas vidas como estudantes de graduação; ali jogando e rindo como se fosse mais um dia normal e não talvez o único em que estivessem  na estranha fase de adolescente-jovem para jovem-adulto.
Ela olhava com fome para cada ser ali e o que se escondia atrás da risada e da aparente normalidade era um medo feroz do amanhã e uma saudade doída da companhia uns dos outros. Se iriam se ver ainda? Possivelmente sim, aquilo era prenúncio para uma amizade que tinha tudo para explodir os muros  da faculdade.
Aquilo iria durar pra sempre, não apenas o amor construído junto, nem o relacionamento de criação conjunta, mas ela... Ah, ela já não era a mesma e o que viria a acontecer seria assustadoramente novo e, quem sabe, tão belo quanto o que descobriu viver entre conversas sem sentido, livros e risadas incontroláveis.
Não era apenas disso que ela sentia falta, pensou depois que chegou em casa com os olhos querendo molhar, o que mais sentia falta era da pessoa que habitou aquele espaço espiritual do relacionamento de crescimento consigo e com outros seres humanos. Pra onde essa pessoa iria agora? Quem  irá acompanhar os ossos já crescidos, a mão mais áspera, o olhar mais vívido? Quem irá abraçar o bicho intermediário que acabara de crescer em tão curto espaço de tempo? Percebeu que aquela despedida não era apenas dos amigos, da faculdade, da fase de estudante... Aquela era mais uma despedida de si.
Estava dando adeus a alguém que nunca mais existiria e ainda bem, e ainda assim... Que sensação de luto a tomava. Os mortos precisam ser enterrados, mas também precisam ser cortejados. “Obrigada por ter existido” ousou afirmar em pensamento, enquanto comia um dos salgados da mesa e olhava para cada rosto entretido com o jogo. Como em uma cena de filme, o som não existia, e a cada sorriso dado e percebido pela pessoa do lado, entendia que a despedida, adeus à morte de si mesmo e dos momentos já passados, também é prenúncio para algo mais belo, maior e que só poderá ser experienciado com uma nova pessoa nascida, crescida, dolorosamente crescida.
 O que virá do futuro é a angústia e delícia que fazia com que ela tomasse um ar e percebesse que tudo é bonito! Seus amigos, aqueles momentos que pareciam ser eternos e quase sempre tão curtos, as conversas intermináveis e sem sentido, o momento impossível de ser segurado com a mão, a despedida embaraçada, o filme com final esquisito, uma sensação de eternidade. Eternidade é, também, quebrar os ciclos em busca do eterno novo. “E que venha”, pensou, “mas antes, deixa eu chorar um pouquinho”.