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Crônica de uma noite de natal (não propriamente sobre o natal)

     


      Eu ando sempre pelo lado direito da calçada, mesmo quando existem enormes poças de água suja como obstáculos. Sinto-me mais protegida da ferocidade das pessoas apressadas, isso porque penso que caso um imprevisto aconteça, as paredes me servirão de amparo, sombra, camuflagem. Sou extremamente tímida. 
      Talvez essa minha psicose esconda uma característica forte de minha personalidade: escravidão da rotina. Acordo sempre no mesmo horário, cumprimento as mesmas pessoas, sento no mesmo assento do ônibus (quando já não está ocupado) e faço questão de ler os mesmos lambe-lambes, anúncios de cartomantes, grafitagens de jovens sonhadores com tendências socialistas... Eu me canso de mim todos os dias, mas ao mesmo tempo não crio forças para fazer algo diferente. O novo me amedronta. 
     Sou divorciada e tenho um filho com meu ex-marido. Não temos uma relação maravilhosa, mas sabemos sorrir ao falar um "oi". Eu ainda o amo,  e esse amor é um misto de dor, náusea e saudade. Saudade daquilo que um dia fomos, da pureza de nossos olhares e palavras. Náusea por todos os vícios revelados pela mesquinheza de um casamento. Dor por todas as feridas causadas pela falta de afinidade, pelo desgaste e acidez de velhos em corpos jovens. Ele não sabe disso. Eu nunca quebrei a rotina para contar-lhe. 
     É natal, mas eu não me sinto atraída por essas luzes, presépios e papais noéis. Perdoem-me, mas minha linha metódica não me permite ficar confortável em dias diferentes. Fora que tudo virou um grande leilão. De eletrodomésticos à sentimentos descartáveis. Eu só queria acordar no outro dia e pegar meu ônibus para a cidade. Sentir o cheiro de gasolina da segunda-feira. 
     Mas hoje é natal e a única coisa que me faz ter um pouco de felicidade é de saber que ficarei mais tempo com meu filho, mesmo que obrigada a estar no mesmo ambiente da mulher do meu ex-marido por um tempo. Pra completar, ainda tenho que fazer cara de surpresa no amigo oculto da casa dos meus pais, onde todos da minha família irão se juntar e me lembrar do quanto minha vida é infeliz, do quanto sou solitária e estou ficando pra titia. Eu os amo, eles devem me amar de alguma forma, mas tocar em assuntos indelicados e difíceis é, sem dúvida, lugar comum em todos os reencontros familiares.
      E ali está eu, naquela mesma pose de quem entende tudo, de quem supera tudo. Eu esboço sorrisos, finjo gostar da rabanada da minha mãe, simulo estar realmente interessada nas estórias de meu tio solteiro e minto quando meus primos mais novos me perguntam a idade. Sou um poço de sentimento de culpa, e acho o fim do mundo deixar alguém constrangido ou se sentindo mal. Como resposta, eu me transformo no centro das indiscrições e constrangimentos. Aguento tudo calada.
      De alguma forma tenho mais simpatia pelo Reveillon e sabe por quê? Porque é dia 31 e o outro dia já é ano novo. É um bilhete assinado pela vida dizendo: "Pronto. Encerramos sua cota de sofrimentos". Mesmo que seja uma baita de uma mentira. Mesmo que eu acorde com a cabeça doendo por tanto beber pra não doer as mandíbulas dos meus sorrisos forçados. Mesmo que eu saiba que eu tive a chance de contornar minhas dores, mas mesmo assim preferi tomar uma anestesia pra continuar vivendo. 
     Viver me dói, e eu me escondo em compromissos, relatórios e calçadas para não dar de cara com a má sorte de saber que poderia ter feito diferente e não fiz. Minha rotina é minha fuga. É como se eu fora uma escrava consciente de seu cativeiro que sente-se mais à vontade em sua jaula do que vulnerável à leões, mesmo que livre. 
     Estão me chamando lá dentro, acho que querem ver minha cara de bêbada para eu ser a piada da noite. Estou exausta e esse é meu estado de espírito. Não quero mais anestesia, porque não sei mais se a dormência é melhor que a dor de viver. Que droga! Estão gritando mais alto. Lá vou eu, cambaleando, com uma dor enorme no peito e um ódio eterno por dias festivos. 

Ah, antes que me esqueça: Feliz Natal.

LER AO SOM DE: UM DIA APÓS O OUTRO - TIAGO IORC

Moça

Ela veste avental,
avental molhado de água suja. 
Seus cabelos são belos, 
mas estão presos e desarrumados.

Ama cinema, 

moda e decoração, 
mas quase ninguém escuta
o que diz seu coração. 

Ela doa sangue todos os dias. 

Litros e litros. Suas mãos tremem de fraqueza.
Doa vida aos seus sanguessugas.
Ela os ama. 

Mas eles não querem os seus olhos brilhantes, 

não querem ouvir suas músicas, suas piadas, 
eles não querem a sua liberdade, 
as suas gargalhadas...

O que eles querem é sua submissão, 

sua voz baixa, seus olhos no chão.
Eles querem falar em tom mais alto, 
querem os ouvidos sempre atentos, 
e sua sensibilidade para abraços. 

Ela não tem tempo para tirar seu avental.

Deseja voar, sair dali...
Deseja ter outra coisa para vestir. 
Ela tem vontades, tem desejos, 
tem sonhos.

As lágrimas são as únicas armas,

mas ela tem que chorar baixinho, 
água quente para as mãos cansadas, 
orando ao seu Deus carinho. 

Moça de avental, quem dera ter no meu abraço

a fuga pra tua dor! 
Iria viver te afagando,
como se quebrando teus grilhões.

Moça de avental, quem dera doar-te

um pouco de vida, 
uns olhos altivos e vivos,
e, quem sabe, se possível
um mundo mais amigo...


Segunda-feira

   

    Quatro horas da manhã e alguns minutos. Não dava pra enxergar muito bem, principalmente para alguém que estava acordando naquele exato momento como Adriana e com a visão embaçada. Ao tentar checar o horário, esticou os braços por cima do marido, que dormia ao seu lado, para alcançar o objeto que estava na cabeceira na outra extremidade da cama. João estava atrapalhando com sua barriga de casado. Casado há mais de vinte e cinco anos. 

     Não era um dia excepcional, não. Era segunda-feira. Adriana tinha muitas coisas a fazer. Levantou-se e mecanicamente foi ao banheiro, lavou o rosto, olhou-o. Velha. Estava velha e com os olhos cansados. Arrastava a perna esquerda, seus ossos doíam... Mas tinha roupa pra lavar, almoço pra fazer, casa pra cuidar. 
   João era um bom homem: não bebia muito, não fumava. Caminhoneiro, mãos grossas, andar duro, olho vivo. De vez em quando, quando dava, os dois iam ao bar do Carlito dançar um forró. Era uma vidinha humilde, de gente de interior... Adriana nunca trabalhara por João não aceitar, e tinha estudado até a quarta série, mas dava umas ajudas com umas roupas que lavava. 
   Tiveram filhos muito jovens, e fora esse o motivo de terem casado cedo. João Filho, Marilene, Maria Joaquina e Josué compunham os quatro filhos do casal. Maria Joaquina e Josué, respectivamente, dezoito e quinze, moravam com os dois. João Filho e Marilene já tinham suas vidas. Maria, casada e diarista, João, motorista e solteiro. 
    Adriana via seus filhos mais velhos periodicamente, sentia saudades, mas sabia que tinha que ser assim. Sua relação com o marido era sólida o suficiente para não ter aquela preocupação de amor. Se o amava? A mulher nem tinha tempo pra pensar nisso. Só tinha tempo para esfregar as roupas, sacolejar suas carnes pelo esforço, branquear suas mãos negras com a espuma do sabão. Cuida logo, Adriana. Teu homem sai cedo, ele tem que comer. Ela prepara um café forte, um cuscuz com carne como todo nordestino gosta e, com um sorriso de mãe, coloca á mesa. Liga o rádio, ouve umas músicas, sai cantando. 
    Alta no dólar? Maria nem sabia do que se tratava, só sabia que o real tava em baixa em sua vida, e sorria, sorria com aquela felicidade de gente sincera. Não havia ambições altas, só queria um colchão melhor pra descansar as costas velhas e os pés rachados. Seu mundo era sua pequena casa, seus afazeres domésticos... Sua poesia era a rua, as gentes que conversava todos os dias.
    O homem se levanta. Come como se tivesse raiva. Adriana sorri pra si mesma e pensa na tarde que o conheceu. O rádio anuncia que o Brasil está numa nova fase, que os pobres, que os pretos estão mais inclusos... João se levanta falando alguma coisa com sua voz de trovão. Adriana, por sua vez, vai desligar o fogo e secar suas mãos frias da água, água esta que sempre a acompanhou por essa vida pequena, por essa vida injusta, por essa vida que se fez feliz em vassouras, suor e sorrisos cheios de dentes. 

LER AO SOM DE: SIMPLICIDADE - PATO FU

Então? Já virei adulta? (Atenção: este é um texto confuso. É sério.)




    Simultaneamente as coisas vão acontecendo. Um dia você tem doze anos, assiste High School Musical e acha o máximo, em outro você simplesmente acorda querendo ler Dostoiévski... E com dezoito na cara. Sabe o que é confuso? O que a gente acaba fazendo com as etapas da vida. É como se fizéssemos prateleiras, catalogadas, devidamente classificadas: "De 1 á 9, criança; de 9 a 13, pré-adolescente; de 13 á 17, adolescente..." 
   Certo. A boquinha acabou. Não sou mais uma adolescente segundo nossa regra e... Para mim, apesar de algumas mudanças, não me sinto, em nada, uma adu... (difícil até de escrever) adulta. 
Este é meu último ano no colégio (tempo para lágrimas), primeira vez em vestibular, mistura de sentimentos, pouca confiança, medo do futuro, em construção de personalidade, de gostos, de metas... Enfim! Uma mistura. 
     A gente cresce com aquele conselho pronto que a escola dá, que a família dá: "Seja alguém na vida"mas... O que seria verdadeiramente o sentido de SER alguém? 
Se o critério for entrar no colégio, passar no vestibular e conseguir o emprego, respectivamente, eu tô tentando satisfazer essa ação social de valor tradicional.
Mas... E depois? 
Vou voltar pro colégio, passar em outro vestibular e conseguir outro emprego? 
Vou me casar com o primeiro que aparecer? Vou ter dez filhos para me ocupar e montar uma canoa pra atravessar o oceano? Ou tentar minha vida no funk lançando vídeos no youtube?
    Tudo bem, eu tô ouvindo música melhor hoje em dia, tô tentando ler Dostoiévski, finalmente entendi a diferença entre revolta e revolução e acho que tenho uma posição política formada. Mas isso não quer dizer que eu tenha amadurecido, que eu esteja pronta para o mundo, que eu não tenha medo do que irá acontecer, que eu me enxergue como adulta. 
   Pra falar a verdade nem sei se existem adultos. No fundo sinto que vou ter essas incertezas para sempre, mesmo com um emprego fixo, sendo mãe, esposa, carregando pastas... Sempre vou me sentir como uma criança que acaba de dormir sozinha pela primeira vez. E com a porta fechada. 
É assim mesmo? Eu já sou adulta, então?
Ok. Então sou adulta. Fique ereta, Thaínes. Respire dez vezes antes de uma decisão. Chegue meia hora antes do marcado. Não abra mão do salto alto, hein? E... Ah, antes que me esqueça: pegue um bloquinho e vá fazendo as contas do que falta na feira. 



LER AO SOM DE: O MUNDO É UM MOINHO - CARTOLA


Coração de lata



E um dia a gente acorda e percebe
que tudo mudou.
Os sorrisos são calculados,
as atitudes são medidas,
os abraços não são apertados,
a vitória, vencida.


Aquela pessoa que você amou,
que, de alguma forma, foi seu mundo,
hoje é um desconhecido, dono de seus "bons - dias"
Os que marcaram sua vida,
nem se dão conta do quanto,
tomam chuva e sol, sangram, como qualquer outro assassino,
que você insulta de sua poltrona.
 

Hoje o céu está azul,
Mas ninguém se importa,
A liberdade é uma prisão,
contida com balas de borracha,
suas lágrimas não são mais ureia, são produtos químicos de um gás lacrimogêneo. 


Esse país chora 

e seus gritos estão silenciados nos muros da cidade.
Ninguém é de ninguém,
ninguém é ninguém.


Há muito tempo que isso aqui morreu,
há muito tempo que você e eu morremos
a revolução começou quando nos demos conta disso


A morte que há não é só a física,
nem também a da democracia e das questões sociais;
Morremos no dia-a-dia, esquecendo do que nos faz gente.
Somos gente ainda ou viramos robôs?


Robôs que matam em questão de segundos
Matam almas, matam corpos, e quando
não há mais corpos, ou carnes, ou algo vermelho sangrando,
Ou algo inocente chorando, matam a si mesmos. 


No dia em que eu morrer, quero pôr a mão no coração
pra confirmar que não foi de bala,
No dia em que eu morrer, quero pôr a mão no peito
e perceber que não virei lata. 




O Ciclo Viciante - Fernanda Muniz - Os Sinceros




Quando abri meus olhos, cansado, o dia mal havia chegado. Pela pequena janela que havia ao lado de minha cama, pude ver a luz acinzentada de um dia que prometia mau tempo.

Por conta de tudo dentro de mim que me atormentava, me parecia que o mau tempo era proposital , como algo que estivesse ali para me provocar. Poderia ser também que os sentimentos que pulsavam aqui dentro estivessem refletindo no céu, agora mais claro, mas ainda nublado, que me pressionava lá fora.

 Pressão. Não encontrei um melhor termo para expressar como estava me sentindo. Tudo em volta me parecia normal, inofensivo. A típica "bagunça organizada" denunciava o desleixo, com algumas roupas fora do lugar e copos deixados em cima da bancada. O ambiente permanecia o mesmo, era comum, familiar. Talvez o que o deixava diferente e desconfortável fossem meus sentimentos, lembranças e angústias.

Passei o dia pensando em todas as decepcionantes conclusões as quais havia chegado tão recentemente e em como esse tipo de pensamento fazia com que eu olhasse tudo ao meu redor com outros olhos. Olhos mais maduros, mais sensatos, porém ainda decepcionados.

Depois de muito tempo, saí de casa com o intuito de esfriar a cabeça, tentar esquecer um pouco os problemas.

Andei por muito tempo, me pareceram horas. Andei até chegar numa ponte não tão próxima da cidade. Chegando lá, parei e me debrucei sobre o parapeito frio da ponte. Olhei para cima, o sol já se punha e a cor do céu era estonteante. O alaranjado forte em meio às nuvens era incrível. Todas as pessoas em volta andando apressadas, concentradas em seus próprios interesses. Daquela maneira, invisível, em meio a tantos estranhos, ainda trazendo comigo o peso que havia acordado em minhas costas, me sentia mais perdido e sozinho. Assistia ao misto de cores que se transformava rapidamente no céu enquanto mais um dia se passava e me arrastava para cada vez mais longe de minhas antigas esperanças, que agora passei a ver, com meus novos olhos decepcionados, como ilusões.

Tudo em volta mais uma vez me pressionando. A mudança de cores rápida acima de meus ombros lenta e dolorosamente me mostrava que mais um momento de escuridão estava a caminho. O desespero era tangível e me encontrava desconsertado, sem saber o que esperar ou fazer em relação a qualquer coisa.

Dentro de mim tudo estava remexido e, quase sem perceber, a pressão suportada durante todo esse tempo foi liberada do jeito mais primitivo: num grito.

E depois de toda a tensão, volto para casa na nova esperança de que o tempo melhore as decepções e que eu me sinta confortável novamente em meio a roupas jogadas e copos por lavar.
 
 
Fernanda Muniz é uma paulistana de dezessete anos que contribuiu pra o blog com sua interessante releitura do quadro "O Grito" do expressionista Edvard Munch. O legal é que esse texto foi originalmente feito para uma redação com o fim de descrever o personagem do quadro de Munch. Ficou muito bom não foi?
 
 
 

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Envie-nos seu texto e diga suas verdades ao mundo!
 
thainesrecila@hotmail.com  

Um cara extraordinário




Cândido tinha trinta e sete anos, bem casado, e um filho pequeno. Era magro, pardo, barba pra se fazer, uma geladeira, dois quartos... Essas respostas de questionários sociológicos do IBGE. 
Gostava de fotografar, era tão sensível... Nas suas fotos podia se ver os olhos de dona Joaquina da esquina, sim, ela estava lá trás do moço agitado com terno e um café, que por sinal, logo depois da foto, iria ser derramado na roupa cheia de frufrus de uma gordinha que segurava o algodão doce do filho. 
Dia de segunda, sabe? Cândido gostava de transformar os momentos pequenos de segunda, em um grande parque de diversões de domingo.
Andava com os bolsos de sua calça jeans (de um azul desbotado) cheios de moedas para distribuir para os mendigos da ruas. Era o mínimo que podia fazer... "A culpa é minha" pensava ele. 
Era um pouco esquecido. Para ele, as datas não faziam tanta lógica... "Porque hoje não pode ser 12 de felizmaio ao invés de 21 de setembro?". Eram perguntas doidas, ele sabia. É porque ele gostava de 12, e do que aconteceu no mês maio... Conhecera Alice. 
E Alice, detestava esse esquecimento proposital dele, mas o amava por esse mesmo jeitinho de menino ingênuo. E ele era tão ingênuo que Alice as vezes sentia-se como sua mãe.
Não era possível que Cândido não percebesse que existiam certos bêbados fingidos de mendigos que o exploravam! 
Santo Deus! Alguém tire do rosto desse homem a expressão de um desgraçado feliz, por favor? 
E assim ele seguia, nos dias de feriado, claro, andando pela rua, feliz da vida... 
Alice dizia ás amigas que seu marido era um tanto feminino... Muito sensível, muito carinhoso... O cara... Mas ligava tanto pra os outros que se esquecia dela, e dele. 
Se ele soubesse o quanto ela odiava quando ele se esquecia do aniversário do filho, ou do próprio, ou de se acordar cedo pra um compromisso... 
Cândido, no mínimo era lunático. Esquerdista não tão ortodoxo, simplesmente porque começara a sentir raiva da contradição que havia nessa posição política. Isso devia-se ao fato da decepção com as pessoas, da corrupção das pessoas, dessas coisas que ele, entristecidamente, tinha entendido a pouco tempo. 
Mas o que tornava o tal Cândido excepcionalmente extraordinário, era a sua capacidade quase amnésica de perdoar o mundo por ser tão injusto para com pessoas como ele. 
Ele perdoava na esperança de poder um dia fotografar pessoas que sorriam mais ás seis da manhã, na esperança de não encontrar mais aqueles mendigos, nem os exploradores bêbados (ele sabia, Alice.) e também na esperança das ideologias não serem tão decepcionantes. 
Ele acreditava em Deus.
Pena seria se soubéssemos que Cândido é apenas um funcionário público com oito horas diárias, um salário precário... E que apesar de não ser desse mundo, more em um país tão pequeno para a sua alma.  

Ler texto ao som de: JOÃO E O PÉ DE FEIJÃO - Cícero

O povo tem raiva, Jabor.




Ontem, assistindo ao Jornal da Globo, após uma cobertura das manifestações contra o aumento de passagens em SP, vi o comentário de Arnaldo Jabor. Pensei: "Grande Jabor. Quero ouvir o que ele tem a dizer sobre isso."
Não que eu seja lá alguma coisa para confrontar esse cara (que é o cara!), mas... Não concordei totalmente com a posição dele. 
É certo que só são 0,20 centavos, e que há pessoas vitimizadas que nem estão envolvidas com o protesto, mas... Será que só eu consegui enxergar algo inusitado?
Mas do que passagem alta, mais do que repressão por parte da polícia e omissão do governo, o povo está com raiva!
O povo está com raiva de toda a impunidade, de todo o dinheiro sujo, de toda a miséria, de toda a saúde precária, violência excessiva, corrupção, de todos os "Brasil - Penúltimo lugar na educação mundial",de todo o tráfico de drogas, de todos os marginalizados, de todos os pobres... E inclusive do aumento da passagem do transporte público. Eles estão nas ruas ao som das bombas de gás lacrimogêneo, estão estirados no chão com tiros de borracha, gritando nas ruas, pichando ônibus e estão revoltados.
Não. De maneira nenhuma isso pode ser entendido como pequeno, como pirraça de garotos de classe média, não são só os 0,20 centavos de uma passagem, é o país aprendendo a soltar o choro de anos resumidos em na garganta. 

O povo tem raiva, Jabor. O povo tem raiva.

Porque EU me envergonho desse evangelho... Falso!

"Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois
é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego."
Romanos 1:16
Diante de tantos movimentos "santos", marchas pra Jesus, travesseiros abençoados, copos ungidos e pastores show-man, definitivamente não poderia ficar calada.
Sou cristã-evangélica, e começo dizendo que não gosto do Pr. Marco Feliciano na Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
Antes de se ter um "Oh" coletivo por parte dos meus amigos de igreja, a minha idéia é simples:
Não estou vendo um posicionamento cristão nele. Ao invés de combater o pecado á luz da bíblia, vejo mais o Pr. Feliciano querendo se promover. Sei que talvez seja apenas um pré-conceito, ou uma imagem que estou tendo, mas não consigo enxergar a parte cristã da coisa, e sim a parte merchan.
Sou contra a prática homossexual, falo isso porque, como cristã vivo de acordo com a bíblia, e por morar em um país laico, tenho o direito de pensar dessa forma.
Tenho que falar, tenho que pregar, tenho que avisá-los do plano maravilhoso de salvação que abrange a TODOS, isso mesmo, a todos, inclusive cristãos.
O pecado da homossexualidade não é maior ou pior do que o seu pecado em julgar o irmão, em se achar superior, em machucar pessoas com suas ações e palavras, em viver uma religião e não a vida de Deus, tudo isso é condenável se não houver o abandono e o arrependimento para com Deus, isso porque não existe pecadinho ou pecadão.
"Porque Deus amou o MUNDO de tal maneira para que todo aquele que NELE CRÊ; Não PEREÇA, mas tenha a VIDA ETERNA." (João 3:16)
Porque ao invés de pregar a graça de Deus em querer salvar o mundo através da morte de Jesus na cruz, livrando o mundo de sua própria ira, as pessoas preferem se promover ás custas do nome de cristão?
A bíblia nos apresenta a vida cristã como uma vida árdua, como um eterno seguir a Jesus carregando sua própria cruz, com os joelhos machucados, com olhos molhados, mas felizes por estar com Ele, por sofrer por Ele... Por ter o privilégio de sofrer por Ele! (Filipenses 1:29)
Seguir a Jesus não é um passaporte para se ganhar novos conversíveis, nem muito menos casas novas e curas de dores de cabeça com copos ungidos em cima de sua TV.
Seguir a Jesus não é entrar para a Wonderland de Alice, quitar todas as suas dívidas, ou cheirar rosas vermelhas milagrosas.
Tampouco seguir a Jesus é dar metade de sua casa para igrejas milionárias, seguir cruzadas de pastores-astros e curandeiros.
Não, Brasil!
"Então ele chamou a multidão e disse: Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me."
(Marcos 8:34)
Onde está a renúncia nesse crescimento, nesse inchaço gospel no país?
A cruz que essas pessoas levam, no mínimo, é de borracha leve. Onde tudo isso se resume? No egoísmo humano.
Igrejas neopentecostais crescem muito, por terem como centro o homem, o eu, o que EU quero, o que EU preciso. Não é difícil entender porque tais templos são lotados, abarrotados.
Infelizmente não posso dizer com a mesma felicidade e coragem as palavras que Paulo disse em Romanos 1:16...
Não com esse "evangelho" que criaram, não com esse "evangelho"
sem Jesus, não com esse cristianismo barato... Sem Cristo.
LER AO SOM DE: ÚLTIMOS DIAS - DANIEL SOUZA

"A liberdade é como o sol: o bem maior do mundo." Jorge Amado


Lendo alguns livros com caráter filosófico, sempre me dou com frases loucas como: "O que é liberdade?"
É engraçado ver as pessoas denotando isso, descrevendo isso como algo descritível, por assim dizer.
Não. Liberdade, meus caros, é tão livremente livre que assim nos livramos de explicá-la. Acho que defini bem.
É algo quase imperceptível, não a enxergamos, não a apalpamos, e a resposta é simples: há prisões invisíveis.
Prisões invisíveis são as mais cruéis, ditatoriais e sutis que existem. Não sabemos que somos livres, porque na verdade sempre estamos presos á correntes imaginárias; correntes de pensamento, de paradigmas...
Assim; não saber que é livre já nos torna cativos. 
É complexo.
Simples mesmo é quando nos vemos livres de algum jugo... Jorge Amado dizia que "A liberdade é como o sol: o bem maior do mundo." 
A sensação deve ser a mais simples, como enxergar o sol, depois de anos e anos vivendo sob a escuridão, bem como o exemplo de Platão no seu "Mito da Caverna". Os olhos ardem, os ossos sentem a sensação crucial de estarem sendo expostos ao calor, á luz.

Acho que foi exatamente assim que Malala Yousafzai sentiu-se ao ter se livrado, mais do que da bala em seu cérebro, das balas invisíveis do Talibã no Paquistão.
Enxergar as próprias correntes é o primeiro passo para se livrar da prisão, e Malala não tinha os canhões, nem muito menos a sofisticação dos métodos de guerra do regime de seu país; mas tinha a voz, tinha os dedos, tinha um blog. 
Ela denunciou a repressão em cima da não-entrada de meninas nas escolas. "Por quê não posso estudar?", "Por quê devo aceitar isso de cabeça baixa?".
O resultado foi dramático; um tiro no crânio e a possibilidade de não mais viver.
Pessoas protestaram, o país se mobilizou, a imprensa internacional televisionou os detalhes: "Será que morre?"

Felizmente, Malala sobreviveu e com a vida ganhou o prazer de entrar na escola novamente. Imagino que sua sensação foi a de como se estivesse nascendo de novo, nascendo livre.

Mas sabe... Milhões de meninas no Paquistão vivem o mesmo drama, outras, talvez, nem tenham noção que estão presas. Quais delas seriam as livres? 

Liberdade é sangue.
O preço da liberdade é sangue.
Malala sabe bem o quanto o doou.

Uma idéia fixa, mas não permanente


Sabe aquele amor do período romântico onde as pessoas, exarcebadas e de forma altruísta, iam até as últimas consequências por alguém, e incondicionalmente?
Acredito que não existe.
Analisei isso racionalmente por algum tempo, e isso não é absoluto, mas ao mesmo tempo é a idéia mais fixa que tenho nesses últimos dias.  
Não estou dizendo que não exista um amor de verdade, ao contrário, eu o defendo e o considero como esperança diante da banalização de tantos sentimentos humanos nesses tempos.
O que quero falar é exatamente sobre o pensamento de um amor completamente e altruistamente INCONDICIONAL.
As pessoas falam demais essa expressão e terminam por não se apegarem ao significado dessa palavra.
Segundo o dicionário, incondicional significa:
"Que não há restrições, não está sujeito a condições, é um estado absoluto, total, pleno, ilimitado." 

Quais são os requisitos para você ter um relacionamento com alguém, falo de qualquer relacionamento?

Basicamente a pessoa tem que ter boa índole, ter os mesmos gostos que os seus, ou pelo menos algo que se identifique com você.
De acordo com o tempo da convivência, a pessoa tem que estar disposta a lhe fazer bem, a ser sincera, mas ao mesmo tempo saber dosar as palavras para não lhe magoar.
Se o relacionamento for amoroso, o cara tem que ser romântico, sensível, compreensivo e ao mesmo tempo firme. A menina; carinhosa, não-ciumenta, confiante, auto-suficiente sem deixar de ser um pouquinho dependente.
Só eu que não consigo ver nisso tudo, altruísmo? Se eu ponho condições é porque não é incondicional, já que isso indica o contrário.

Nós sempre amamos alguém pelo que ela pode nos oferecer, seja materialmente, socialmente, afetuosamente... Nunca damos algo sem esperar em troca, isso é utopia. Os únicos amores incondicionais em que acredito é o de Deus e o das mães.
Acho que o motivo de nosso amor ser falho, é justamente por sermos egoístas por natureza. Eu só aceito uma pessoa por completo e a amo, se ela ME fizer bem, ME tratar bem, ser exatamente ou parcialmente como EU quero...

Queria experimentar, ao menos um dia, a sensação de ser menos mesquinha e amar a pior pessoa do mundo, esperando exatamente nada em troca.
É estranho, e é quase impossível.
O amor humano é falho, é frágil, mas é verdadeiro, é sincero o suficiente para revelar quem somos e por ser assim torna-se autêntico.
Ame, mas pense um pouco antes de usar superlativos absolutos para descrever um possível amor incondicional.
Talvez eu esteja errada, mas... Minhas idéias fixas demoram a se degradar.


SONETO XIV - Elizabeth B. Browning
Tradução: Manuel Bandeira 


Ama-me por amor do amor somente
Não digas: «Amo-a pelo seu olhar,
O seu sorriso, o modo de falar
Honesto e brando. Amo-a porque se sente

Minh'alma em comunhão constantemente
Com a sua.» Porque pode mudar
Isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
Do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
De tuas mãos enxuga, pois se em mim
Secar, por teu conforto, esta vontade

De chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me por amor do amor, e assim
Me hás de querer por toda a eternidade.


A Necessidade nos Une


Um dia, comum e tosco dos meus muitos, a energia caiu e eu fiquei por alguns minutos na escuridão da ausência da eletricidade.
Foi curioso perceber nossa primitividade quando estamos longe de luz e TV.
Geralmente vizinhos se encontram, comentam sobre os respectivos motivos do incidente, e não se importam com as roupas, com suas diferenças e nem muito menos com as desavenças do dia anterior, é como se estivessem livres do jugo que pesa sobre todos, todos os dias.
Não importa se está acontecendo problemas na sua casa, ou se o dinheiro está faltando... Naquele momento todos são iguais.
E o ápice desse meu pensamento ocorreu no instante em que todos os que estavam comentando, assim como os que passavam pela rua, olharam para o céu cheio de estrelas.
Contemplamos por alguns minutos, em silêncio, a beleza delas, a pureza delas... Mas não seriam essas as mesmas estrelas que nos clareiam quase todas as noites?
Perceberíamos se não estivéssemos tão ocupados com nossas futilidades, á luz de TV's com canais manipuladores!
Estamos tão acostumados com a correria do dia-a-dia, preocupados se a chuva vai ou não molhar nossos cabelos alisados ou se o anti-vírus do computador está desatualizado, que terminamos não percebendo as coisas mais belas que nos cercam, mesmo que alumiados pela lâmpada elétrica de Thomas Edison.
A vida é simples, simplesmente. Só percebemos isso quando nos despimos da ignorância farsada de inteligência e pisamos no chão da necessidade. As vezes é preciso a fome nos chamar, quase nos afogarmos, ou até quem sabe a luz faltar para podermos voltar ao nosso estado de primitivismo singelo, porque no final de tudo, e por mais fatídico que seja, é a necessidade que nos une.

LER AO SOM DE: O AMOR QUE NOS FAZ UM - PALAVRANTIGA

Um episódio corriqueiro

Em um outdoor na rua principal de alguma cidade por esse país, estava estampado uma campanha nova do governo contra a fome. Era natal, e os sinos batiam nas igrejas próximas, as luzes iluminavam mais que os postes, e os carros, apesar de velozes, não estavam tão violentos, de alguma forma tentavam respeitar o clima fraterno da data.
E onde estava Antônio naquilo tudo? Homem de meia idade, atrasado para a ceia em família, com não sei quantos litros de bebida e um suéter novo que tinha comprado pra o seu amigo secreto.
Estava ele esperando o sémaforo abrir, quando se viu diante desse outdoor. Havia uma criança suja e dormindo ao chão na imagem, com algumas letras sensacionalistas e apelativas contra a consciência da sociedade.

"Belo texto publicitário" pensara ele.

Ao seu lado passara um rapazinho de dez anos, mais ou menos, limpando o vidro de seu carro, o sinal abriu, alguns trocos que tinha... Uns trinta centavos, no máximo lhe foram dados.
Antônio seguiu e o garoto também.

Nem sempre vilões se redimem



É mania minha acreditar em olhos molhados, ver verdade em sorrisos e me convencer que certos erros são consequências de algum sofrimento.
Mas por que causar dor em outro amenizaria a minha dor?
Será, realmente, que alguém é capaz de viver num teatro continuamente, de tal maneira que fingir já se torna algo próprio da personalidade?
Me desculpem, ingênuos, mas sou obrigada a dizer que existem vilões em suas telenovelas, e há pessoas tão más, que fariam de tudo para alcançar seus objetivos, até passar por cima de vocês, com um caminhão vermelho.
Na certa, se têm a possibilidade de que esses vilões tenham tido um passado sofrido e sem amor, e por desconhecerem tal sentimento, não o cultivaram em suas vidas, em seus relacionamentos, em suas ações.
Nós, os ingênuos, somos tão puros, mas tão puros... Que acreditamos, em algum momento que, talvez nós os mudemos com nossa pureza, nosso amor...
Mas o que ainda não aprendemos é que nem sempre vilões se redimem, e há pessoas que deliberadamente gostam desse papel e escolhem permanecerem assim, independente de nossos olhares de Goethe sobre a vida.
Ainda deve haver esperança para essas pessoas, afinal, não posso terminar um texto de forma tão byroniana.
Quem sabe em algum lugar ou momento, elas não reflitam sobre seus atos e de fato mudem?
Eu, até lá e por enquanto ainda acreditarei mais na lealdade e amor dos cachorros.

Antídoto Amnésico


Eu não escrevi nada de especial no fim do ano, como geralmente as pessoas fazem.
É claro que a falta da internet teve um peso grande nessa minha decisão, mas não fiz, propositalmente.
Sou obrigada a escrever algo sobre o que isso tudo significou pra mim, digo, no quesito social.
As pessoas, durante o ano todo machucam, ferem, roubam paz, contribuem para as guerras internas de nós todos, e no dia vinte e cinco de dezembro, e logo após no dia trinta e um, como se tivessem tomado a um antídoto amnésico, passam a amar estranhamente umas as outras. Sei que amor é uma palavra forte, mas sigo a linha de Lispector, que na terra da fome o "pão é amor entre estranhos", e na terra da omissão e invisibilidade, os cumprimentos "Feliz ano novo", e "feliz natal" que por alguns segundos remetem ao outro a sensação de estar sendo notado, podem ser uma nova forma do sentimento.
Uma forma errada e estranha; até porque o efeito do antídoto amnésico passa geralmente no dia um do ano novo, e pra ser mais específica, logo após sua soneca de ressaca.
Ora! Vamos acabar com isso!
Tudo é uma farsa, não é mesmo?
Diante desse inquérito, só temos duas opções: tomamos o antídoto amnésico durante todo o ano para esquecermos do quanto somos mesquinhos e egoístas, e do quanto machucamos os outros, ou o usamos nos períodos festivos para assim aliviarmos nossas consciências, sem transformá-lo em uma utilidade demasiada.