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Amor & Blues

Enquanto ouvia Muddy Waters no seu cadillac azul de cor desbotada, Marcos sonhava ainda estar nos anos 60. O blues, o cigarro que fumava, o cadillac azul, os cabelos tingidos de preto... Exatamente todo esse retrato definia sua prisão ao passado, seu amor ao que já fora.
E realmente, foram tempos bons que vivera. Principalmente lembrava-se de um episódio em especial.
Eram meados de 66, Marcos tinha seus dezenove anos, cabeludo, usava uma jaqueta de couro preta, uns óculos escuros redondos (imitava o John Lennon).
Andava pela vizinhança com o carro do seu pai... Um Cadillac Fleetwood 1954, olhando-se a cada minuto pelo retrovisor, ansioso para ver a garota que amava.
Rita o esperava na porta da escola, fofocava com as as amigas o quanto Marcos era bonito, o quanto o carro dele era bonito...
Rita era linda, uma perfeitinha garota paulista dos cabelos de laquê, o estereótipo americano do que chamam ser "sonho de consumo".
Rita amava o jeito rebelde de Marcos, os cabelos rebeldes de Marcos... E eram assim que estavam os próprios cabelos quando finalmente chegara na porta da escola; rebeldes, voando ao vento.
Estava ao som de Hoochie Coochie Man do Muddy Waters, e tinha um ar autêntico de garanhão. As garotas que estavam com Rita ficaram suspirando por aquele alter ego do Elvis Presley enquanto a dona do coração aventureiro do rapaz entrava no carro.
Foram-se com a liberdade travestida de vento sobre os cabelos de laquê... O Brasil estava em guerra, dominado pela ditadura, não se tinha voz naqueles dias... Mas Marcos protestava assim como tantos jovens estudantes naquela época, sendo apenas... Jovem!
Marcos protestava beijando sua Rita no meio da rua, Marcos protestava chamando nomes feios com os militares que passavam por ele... Fora preso algumas vezes, exibia as marcas de algumas torturas como troféus para os amigos sedentos por um país livre.
O país estava numa guerra fria e violenta, mas naquele dia semanal nada mais importava... Marcos era livre, livre para amar Rita, e para ele só isso bastava.
Foram-se pelas ruas sangrentas de um país aprisionado.
E agora quase cinquenta anos depois, Marcos relutava por viver aqueles tempos de rebeldia. Seus cabelos não eram como antes, tinha engordado, casara-se com Rita, sua velha que hoje detesta laquê... Mas ainda ouvia blues, ainda teimava em ser jovem lutando contra seus muitos cabelos brancos de sessenta e cinco anos.
Os tempos haviam mudado e o país era de fato livre...
Só Marcos que ainda estava preso. Não preso ás forças militares, nem torturado por generais de grande ordem.
Aquela "liberdade" contida que ele tinha nos censurados tempos de 60 o aprisionava em tempos livres... Mas não exatamente tempos de paz.


LER TEXTO AO SOM DE: COMO OS NOSSOS PAIS - ELLIS REGINA

Repetições como essas...

Um dia comum, em uma semana comum, uma pessoa comum acorda.
Acorda e faz as suas tarefas diárias, sorri para o cônjuge, beija os filhos, sai em caminhada para o trabalho.
Vê gente, tropeça em mendigos, se interessa pela roupa da vitrine, pensa na dívida que tem que pagar, chega no trabalho.
No trabalho sorri, meio que forçadamente para os colegas, organiza sua pauta do dia... É meio difícil ser jornalista num campo tão corrompido.
Se olha no espelho, percebe que está meio velha, aspecto de cansada, com bolsas nos olhos... Nem parece aquela menina que todos diziam ser linda em tempos de dezessete anos, quando era considerada musa dos poetas marginais da escola, os ladrões de frases de efeito.
Se penteia um pouco pra fugir daquela aparência e percebe que o seu chef está chegando.
O expediente termina, volta para casa e não se sabe o por que, mas novamente tropeça no mesmo mendigo; "Será que ele não sai do caminho?".
Apaixona-se por outro look na vitrine, mas logo lembra-se que não tem dinheiro o suficiente já que se tem que cobrir o cheque daquele dia...
Ah!
E o tempo rouba-lhe a vida, e a rotina escraviza-a com suas garras travestidas de conforto (ou desconforto)...
E sem perceber a vida da pobre jornalista vai fazendo contornos de uma vida sem sentido, sem sabor... Onde tudo resume-se em repetições como essas.




LER AO SOM DE: NOSTALGIA - THIAGO GRULHA

O Poder Que Temos

Em nossas mãos está o poder da morte e da vida.
Não é nenhuma arrogância minha dizer isso, mas isso não passa de uma verdade. Você pode até se perguntar: "Eu? Matar alguém? Mas sou tão inofensivo!" ou "Eu? Dar vida a alguém? Mas sou tão insignificante"... Mas é aí que se está a beleza desse cosmo. A dualidade que nisso existe. O bem, o mal, os soberbos e os extremamente humildes.
Você não mata alguém apenas com um revólver, uma faca ou qualquer outro objeto cortante... Essa é apenas a morte física, a dor física.
Existe uma morte que pode ser considerada uma das piores, esta é a morte por palavras, por ações ou simplesmente por falta de qualquer uma dessas.
Essa é aquela morte que nos corroe por dentro, que nos sangra pouco a pouco e gradativamente nos tira o ar. É aquela em que a pessoa nos diz algo que fere profundamente e que demora anos para cicatrizar, é aquela em que a frieza do olhar congela, é aquela em que a ausência de um abraço destrói.

Temos o poder de matar todos os dias as pessoas, e essa morte é a que mais acontece.

Por outro lado podemos dar vida todos os dias.
Podemos salvar vidas de um dia triste com apenas um sorriso, gerar alegria com um abraço... Podemos dar vida quando somos sinceros, quando nos importamos de verdade, quando não nos ausentamos, quando não somos frios...
Podemos salvar vidas quando simplesmente somos educados em um cordial cumprimento como: "Tudo bem?"...
Enfim, temos esse poder em mãos, temos essa arma poderosa e na maioria das vezes nem nos damos conta disso e por vezes nessa estrada da vida acumulamos cadáveres atrás de nós.

Vai Ficar Tudo Bem

Querida,
Parece que hoje foi ruim pra você.
Não finja,
Ás vezes desabafar
É melhor do que se esconder.

A vida ás vezes é tão complicada
Eu sei, mas um dia
Tudo isso passa.
E a nostalgia vem a nossa mente
Trazendo passados
Alegres e recentes.
Mas vai ficar tudo bem,
Vai ficar tudo bem...

Em um dia simples
Você vai acordar
E perceber que já passou
Abrirá as janelas
E agradecerá
Pois vai ficar tudo bem
Vai ficar tudo bem

"Cada Zé é um Ulisses, e cada vida uma Odisseia" - Eliane Brum


Acho que já comentei bastante pelo Facebook sobre esse livro (A Vida Que Ninguém Vê da Eliane Brum), só que ainda não o tinha lido por completo, ontem terminei de lê-lo e as palavras de Eliane ao final do livro foram as que mais me surpreenderam: "Cada Zé é um Ulisses e cada vida uma Odisseia".
Analisei bastante essa frase, e notei que ela resume todo o livro e de fato toda a vida.
Ando tendo algumas confusões dentro de mim, não sei de fato o quê... É como se eu estivesse ansiosa por algo novo, cansada das mesmas coisas sempre. Bom, isso pode ser uma das consequências do pensamento imediatista de nossa geração: a ansiedade por algo novo, mas de qualquer forma acredito que ando tendo momentos de tédio, de puro tédio existencial; a procura de algo que faça realmente minha vida servir de uma boa estória pra contar para os netos e não várias páginas repetidas, não momentos repetidos.
Esse livro me encontrou no momento certo, no momento em que o cansaço me resumia, o cansaço de acordar e saber o que se vai suceder como se de alguma forma eu tivesse o script pronto para aquele dia.
Eu queria (e quero!) o surpreendente, o desconhecido! Quero viver algo novo, passar por situações que nunca passei,ter algum adjetivo adequado pra definir minha trajetória... De fato antes desse livro acreditava que minha vida fosse a mais ordinária e comum de todas, mas consegui entender um princípio importante: cada vida é simplesmente extraordinária, somos tão iguais quanto diferentes, tão comuns quanto singulares! Estava cansada de habitar no pluralismo, queria que alguém me visse com um olhar diferente, mais que isso; queria me ver sob uma nova ótica.
Outra coisa que aprendi: o olhar diferenciado.
Olhar para as coisas de forma diferente é nada mais do que desconfiar do óbvio, não ter medo de sair de nossas redomas rotineiras... Encarar o novo!
Minha vida é extraordinariamente ordinária, mais um princípio que devo colocar na cabeça, seguir em frente e encarar os mares confusos dessa minha Odisseia.

LER O TEXTO AO SOM DE: GOOD DAY - PAUL WESTERBERG