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LIVRAI-NOS DE GILEAD, AMÉM!



The Handmaid’s Tale (participei de um programa de podcast opininando sobre a série em uma perspectiva de mulheres cristãs, aqui no site do Redomas), a série premiada e cultuada pela crítica, do serviço de streaming Hulu, é difícil de ver, isso todos nós que acompanhamos já sabemos. 
Mas algo que aprendi nos últimos anos é que, por mais que as dores sejam compatíveis, nenhuma dor é igual a outra, todos nós existimos a base de rótulos que carregam em si pesos que historicamente nos remetem a dores diferentes.
Veja bem, somos todos iguais, não somos? A resposta, por mais que seja intrigante é a mais pura verdade: não somos. E tudo bem por isso, em essência, com o tanto que sejamos tratados igualmente e entendamos que nenhuma das nossas diferenças são instrumentos de crueldade. Mas a história do mundo nem sempre entendeu isso, e ainda não entende. Por séculos tínhamos estudos “científicos” que justificaram infanticídio em Roma, escravidão negra, assim como o antisemitismo baseados no darwinismo social e a opressão de mulheres sendo justificada por todas as esferas da vida humana, desde a ciência, filosofia até a teologia.

E dentro dessa história confusa que nos criou, existem os que estão dentro de rótulos que sofrem até hoje as consequências do resquício da supremacia humana baseada em alguma característica – a saber, o branco, homem, europeu, aqui no Ocidente. Eu faço parte de alguns rótulos que têm peso sobre minha existência: sou mulher, sou negra e... sou cristã. O “cristianismo”, permitam-me adicionar as aspas, desde que se casou com o Império e expandiu-se pelo mundo em forma de colonização e não evangelização, deixou de ser a religião baseada na pessoa de Jesus para ser um instrumento de poder. E poder é muito mais atrativo do que carregar a cruz de Cristo, o histórico e divino Cristo.
Agora imaginem habitar em um corpo que te coloca dentro de duas categorias humanas que historicamente foram pisoteadas e massacradas ao mesmo tempo em que, de todo coração, se tem um relacionamento com o Cristo do Cristianismo sem aspas e se convive com cristãos que tem um relacionamento com o Império e com o cristianismo com aspas? É doloroso.
Assistir Handmaid’s Tale, para minha experiência, é muito mais sofrível, sangrento e difícil porque eu vivo dores que me colocam em uma existência que foi negada e massacrada pelo cristianismo sem Cristo, pelo instrumento do Poder e não pelo Poder do evangelho; porque minha história dentro da sociedade é escrita pelos moldes de pessoas que lá trás utilizaram da minha tão amada confissão de fé para serem instrumentos de Satanás.
São essas camadas existenciais que me perseguem e que são colocadas no meu rosto a todo o tempo enquanto assisto Handmaid’s Tale. Para te situar sobre a história: a série é uma adaptação do livro “O conto da Aia” de Margaret Atwood, uma escritora canadense; acompanhamos, então a narrativa de Offred ou June, como é seu verdadeiro nome, uma aia que relata como os Estados Unidos sofreram um golpe de estado de uma seita cristã extremista e implantaram Gilead, uma nação baseada em interpretações do Antigo Testamento e de algumas passagens do novo. O motivo para a tomada de poder nos EUA se dá pela infertilidade das mulheres, o que é automaticamente entendido como castigo divino pela depravação humana, surgem então essas pessoas que decidem colocar as coisas em “ordem”, rejeitando toda a tecnologia, fazendo as mulheres voltarem aos seus “lugares” e matando todos os que quebram alguma regra que dizem ser bíblica.

As mulheres, que são o foco narrativo da história, são divididas em castas que, na verdade, são as expectativas que um homem ultra-conservador dessa seita cristã espera: casadas, aias e marthas. As mulheres casadas se vestem modestamente, só podem estar em casa e em lugares restritos e não se metem nos “assuntos” dos maridos comandantes, que decidem a vida política de Gilead; as Marthas são as que se dedicam à vida doméstica, são como empregadas e suas existências estão voltadas aos cuidados com o Lar; as Aias, são mulheres férteis capturadas que, antes do regime, viviam contra as regras de Gilead: foram amantes, divorciadas ou lésbicas. E é na perspectiva de uma aia que a história é contada. June, ou Offred (Of + Fred, que quer dizer “de Fred”, ou seja ela pertence à Fred Waterford, dono da casa em que foi enviada). A aia fica dentro da casa, vestindo um longo vestido vermelho e um chapéu que lembra cabresto, não pode olhar para os lados, não pode olhar nos olhos de nenhum homem, só pode falar baixo e em todos os meses são submetidas a um “ritual” em que os Comandantes, donos das casas, estupram-na após uma leitura bíblica do texto da concubina de Jacó. O que iguala todas as mulheres da casta é que todas estão abaixo do poder do Comandante, em Gilead nenhuma mulher pode dar sua opinião, escolher outra vida ou simplesmente ler, nem mesmo a bíblia, “regra de fé” da República; a punição para casos de qualquer uma dessas “normas” é a morte, apedrejamento ou amputação de partes do corpo (se alguém ver algo que não deve, deve-lhe ser arrancado os olhos, se tocou em uma bíblia e escreveu ou leu, os dedos ou mãos são cortadas). Aos homens é dado o poder de liderança, decisão e poder, inclusive de ler as escrituras e interpretarem como queiram.

É justamente nessa relação complexa com a história  do Cristianismo que a série me fere o peito. Todas essas opressões mostradas são, segundo a própria Margaret Atwood, colhidas de relatos de mulheres dentro da história, nenhuma tortura mostrada, nenhuma forma de opressão foi inventada pela escritora: todas existiram e existem em algumas partes do mundo (principalmente em países teocráticos com o Islã como religião oficial no Oriente Médio ou alguns países da África).
Com isso deixo claro que a mensagem da série não é contra o cristianismo, mas sim contra as diversas formas que uma ideologia usou para oprimir mulheres e endeusar o homem, utilizando, para isto a própria religião. Mas o que é que nos assusta tanto em Handmaid’s Tale? Por que temos a sensação de estarmos perto? Por que me causa angústia? Eu tentei explicar a partir de minha experiência como mulher cristã dentro do meu contexto

Em Gilead, mulher tem de se adequar às suas castas

Por que me assusto com essa parte da história? Mulheres são divididas em castas e são ensinadas a permanecerem lá (aqui parece o enredo de “Admirável Mundo Novo” outra distopia) e ainda a entenderem-se como transgressoras e não amadas por Deus se não cumprirem com sua sina. Dentro da igreja, alguns discursos parecidos são disseminados e entendidos como verdade por muitas mulheres: não posso pensar de forma diferente porque estarei transgredindo à vontade de Deus na minha vida. E para isso você se adequa aos moldes de alguns discursos: “o chamado da mulher é ser do lar”; “mulher não precisa de emprego, pois não tem o papel de ser provedora da casa” e dentre outros, mesmo com inúmeras passagens de mulheres trabalhadoras na bíblia e de um anacronismo hermenêutico que só pode ser utilizado com fins egoístas. Aqui não estou dizendo que uma mulher NÃO pode ser do lar, porque assim eu entro na mesma lógica: o que estou dizendo é que nossa identidade está em Cristo e o que fazemos tem de glorificá-lo, seja como dona de casa, seja como empresária, seja como solteira, seja como mãe.


Em Gilead, mulher não opina

            Já me dei, em meu crescimento com diversos discursos sobre a desqualificação da minha opinião pelo meu gênero, afinal, em uma conversa entre homens qual a utilidade da opinião feminina? Dentro de algumas igrejas, mulheres, em uma hermenêutica distorcida das palavras de Paulo são proibidas de falarem, e em casos mais amenos, em que parece que não é tão sério assim, suas opiniões não são tão levadas a sério para fins teológicos, de ensino ou estudo bíblico.       

        
               Em Gilead, mulher não lê

            Tá aqui uma das raízes mais polêmicas da série. Ler pode ser uma metáfora para o acesso ao conhecimento e, dentro do nosso contexto religioso cristão, ler é entrar no campo do estudo da Palavra de Deus, que é a Bíblia. É facilmente admissível no nosso século, ter mulheres estudando a bíblia, mas dificilmente se tem mulheres fazendo teologia, por ainda ser entendido como um campo para homens, afinal, para que mulheres fazendo teologia se este não é o seu “lugar”? Para que mulheres lendo em Gilead, se a função delas é se adequarem nas castas? O que Gilead e algumas igrejas esquecem é que restringir o acesso ao conhecimento das Escrituras, ouso dizer, é uma obra anticristã. Explico: quando Jesus morreu na cruz ele igualou todas as pessoas salvas com o direito de conhecer a Deus. Restringir o conhecimento dos estudos da Palavra é negar o que Cristo gratuitamente já deu. É querer mulheres como Marta, que estão dentro do que se entende como ideal, e desprezarem Maria, que é a elogiada por Jesus porque escolheu a melhor parte: conhecê-lo, mesmo quando no contexto apresentado, o escândalo de Marta fosse por Maria não estar assumindo o que era “papel da mulher” como dona do lar, mas aprendendo do Mestre, sendo discípula, em uma sociedade em que a mulher não valia nada e muito menos poderia ser alvo de ensino.



Com o sistema de castas, Gilead, dentro da narrativa da série tem um poder indestrutível porque estas mulheres entendem-se como inimigas e, de alguma forma, livres. Serena, uma das melhores personagens da série, é uma esposa que ajudou a construir Gilead sendo uma intelectual de opiniões “fortes” e que era tolerada no antigo EUA em nome da democracia. Seus ideais construíram Gilead, e como esposa sentia-se segura por ser “respeitada” pelos homens, afinal, as mulheres que sofrem e estão nas outras castas, merecem sofrer porque são “pecadoras”, estão fora da vontade de Deus. Nos últimos momentos da recente temporada, o que vemos é a derrocada da idealização de Serena e a percepção de que o sistema, tão almejado por ela, na verdade sempre foi contra ela.

A disputa feminina não é algo puramente construído por mulheres, é um instrumento de poder. É colocando nas nossas cabeças que, não sendo santas, no conceito de santidade que é mais cultural do que bíblico, algumas mulheres sim merecem o desrespeito, a falta de oportunidade, a humilhação e até o marido violento, afinal, é falta de fé, é porque não assumiu seu “lugar”, é porque não é mulher “virtuosa”.
No reino de Cristo, ao contrário do reino de Gilead, as mulheres são amadas, tidas como imagem de Deus, primeiras testemunhas de sua ressurreição, escolhidas como instrumento para abençoar o mundo com o plano de Salvação, ensinadas como um discípulo homem, ao pé de Cristo, hospedeiras de igrejas, líderes, co-implantoras de igrejas e missionárias. Mas há algo na lógica dos reinos que o próprio Jesus nos advertiu que tem de ser levado em conta: se um existe, o outro tem de ruir e que nessa briga de reinos, em nossas igrejas, em nossos corações, em nossa santidade, o Reino de Cristo venha e o de Gilead seja destruído para sempre.


Obs: Estou sentindo que provavelmente pessoas irão me chamar de liberal teológica, influenciada pela "ideologia" feminista, herege, não crente... então, para fins de discussão baseadas no amor e no respeito, estou disponibilizando links interessantes sobre como alguns discursos tidos como bíblicos podem ser, na verdade, ideológicos ou como você pode simplesmente respeitar minha opinião sem me condenar ao inferno por algo que não é essencial na fundamentação cristã:

  1. Women's Service in the Church: The biblical basis - NT Wright
  2. The Lies of "Biblical Gender Roles" - Tim Fall
  3. Ordenação Feminina - Podcast - Bibotalk
  4. Mulheres no Início do Cristianismo - Podcast - Bibotalk
  5. Paulo e as Mulheres - Texto por Alexandre Millhoranza
  6. Mulheres no início do protestantismo - Podcast por Bibotalk
  7. Marg Mowczo - Site oficia
  8. The Junia Project

DESPEDIDAS

"La despedida" - Gastón Castello

Ela ajeitou o sutiã e apoiou de forma não tão confortável os cotovelos naquela mesa. Sua língua assim como o resto do corpo gritavam para falar, mas o silêncio calava. Ali estavam as pessoas com quem tinha dividido quase cinco anos na fase da faculdade. Ali, no último dia de suas vidas como estudantes de graduação; ali jogando e rindo como se fosse mais um dia normal e não talvez o único em que estivessem  na estranha fase de adolescente-jovem para jovem-adulto.
Ela olhava com fome para cada ser ali e o que se escondia atrás da risada e da aparente normalidade era um medo feroz do amanhã e uma saudade doída da companhia uns dos outros. Se iriam se ver ainda? Possivelmente sim, aquilo era prenúncio para uma amizade que tinha tudo para explodir os muros  da faculdade.
Aquilo iria durar pra sempre, não apenas o amor construído junto, nem o relacionamento de criação conjunta, mas ela... Ah, ela já não era a mesma e o que viria a acontecer seria assustadoramente novo e, quem sabe, tão belo quanto o que descobriu viver entre conversas sem sentido, livros e risadas incontroláveis.
Não era apenas disso que ela sentia falta, pensou depois que chegou em casa com os olhos querendo molhar, o que mais sentia falta era da pessoa que habitou aquele espaço espiritual do relacionamento de crescimento consigo e com outros seres humanos. Pra onde essa pessoa iria agora? Quem  irá acompanhar os ossos já crescidos, a mão mais áspera, o olhar mais vívido? Quem irá abraçar o bicho intermediário que acabara de crescer em tão curto espaço de tempo? Percebeu que aquela despedida não era apenas dos amigos, da faculdade, da fase de estudante... Aquela era mais uma despedida de si.
Estava dando adeus a alguém que nunca mais existiria e ainda bem, e ainda assim... Que sensação de luto a tomava. Os mortos precisam ser enterrados, mas também precisam ser cortejados. “Obrigada por ter existido” ousou afirmar em pensamento, enquanto comia um dos salgados da mesa e olhava para cada rosto entretido com o jogo. Como em uma cena de filme, o som não existia, e a cada sorriso dado e percebido pela pessoa do lado, entendia que a despedida, adeus à morte de si mesmo e dos momentos já passados, também é prenúncio para algo mais belo, maior e que só poderá ser experienciado com uma nova pessoa nascida, crescida, dolorosamente crescida.
 O que virá do futuro é a angústia e delícia que fazia com que ela tomasse um ar e percebesse que tudo é bonito! Seus amigos, aqueles momentos que pareciam ser eternos e quase sempre tão curtos, as conversas intermináveis e sem sentido, o momento impossível de ser segurado com a mão, a despedida embaraçada, o filme com final esquisito, uma sensação de eternidade. Eternidade é, também, quebrar os ciclos em busca do eterno novo. “E que venha”, pensou, “mas antes, deixa eu chorar um pouquinho”.

O QUE NOSSAS TEORIAS DE CONSPIRAÇÃO DIZEM SOBRE NÓS?



Existe uma verdade que muitos de nós não sabe ou finge que não sabe: o evangélico médio brasileiro é sedento por teorias de conspiração. Não importa se essa grande conspiração que irá nos destruir vem de símbolos utilizados no filme Harry Potter, o mal do Rock (como nos anos 80/90), na orquestração Illuminati ou no grande plano político comunista que vai matar todos os cristãos do mundo, uma coisa é perceptível em todas elas: há sempre uma dicotomia gritante que garante que “eles” (e aqui adicione a figura, cantor, ativista, partido que quiser) são nossos inimigos e que irão nos destruir, caso não acordemos e lutemos contra essas forças do mal.
A lógica da paranoia evangélica é baseada em fundamentações rasas que nascem da mesma lógica maniqueísta de um filme da Marvel ou DC em que o herói perfeito tem a incumbência de salvar o mundo das garras do grande vilão tenebroso e malvado que não possui nenhum traço de bondade. Não importa para o paranoico se tudo o que contam como grande plano para acabar com os evangélicos, a família, o casamento, a infância e entre tantas coisas não têm fundamentação ou que não existe perseguição institucional, política e religiosa contra o cristianismo no Brasil, ele há de sempre erigir um novo inimigo para que todos nós prestemos atenção e desestabilizemos. A lógica é de guerra. O objetivo e a origem da guerra? Não existem.
Para o protestante evangélico médio viciado em teorias de conspiração, estamos passando por uma sofrível e deplorável perseguição, orquestrada por um grande sistema que quer desestabilizar nossa liberdade de culto, nossa educação para nossos filhos, nossos casamentos e nossas famílias. O que passa despercebido, seja de forma proposital ou não, é que o Brasil é um dos países com mais cristãos do mundo, segundo o último censo do IBGE em 2010, 86,8% dos habitantes do país são cristãos, sendo 64,6% católicos e 22,2% de evangélicos, tendo a massa evangélica como mais possível de crescer e até de se igualar ou passar a maioria católica do país (em 26 anos, os evangélicos cresceram de 9% para 22,2%, o que aumenta a probabilidade de uma explosão em crescimento para os próximos anos). Além dos números, a nossa cultura é permeada do imaginário cristão, nossa linguagem, nossa forma de lidar com a morte, casamento e entre tantos refletem o modus vivendis cristão institucional. Somado a toda essa força em número de pessoas e na própria cultura, nós temos, especificamente no seio evangélico, mais representantes nos espaços públicos, uma bancada inteira dentro do congresso (bancada essa que se diz representante dos interesses da igreja) e igrejas evangélicas neopentecostais sendo vistas como a galinha dos ovos de ouros para políticos, lugares privilegiados e requintados em que candidatos se sentam ao púlpito, falam de suas propostas e recebem a “bênção” da igreja (ou de seus líderes) para aquela denominação de não sei quantos mil membros, em uma atitude parecida ao coronelismo, votar em peso para assim lutar contra essa tal de perseguição religiosa contra nossos valores.
Será realmente que somos nós os perseguidos?
Apesar do crescente número de cristãos, da grande representação política e econômica que temos, nunca em tantos anos houve tanta violência, derrocada da moral, escândalos em nosso meio e morte de grupos realmente minoritários; contínuo avanço de mortes e violência contra mulher, sendo 40% delas evangélicas e recebendo vista grossa e silenciamento em muitas igrejas (não todas, aqui deixo claro), intolerância religiosa para religiões de matriz africana, mortes e violência de pessoas da comunidade LGBT, violência e mais mortes contra jovens negros em periferias, além de muito pouco caso com o pecado estrutural do racismo, do machismo e entre outros. Os números não mentem, mas talvez o discurso de que somos nós os perseguidos do país seja completamente mentiroso.
Além de tudo isso, ainda se tem uma espécie de “patrulha do verdadeiro cristão” que julga a salvação uns dos outros baseando-se estritamente no discurso político e ideológico: “não pode isso porque isso parece com a esquerda, a esquerda é comunista, o comunismo é ateu, o comunismo matou vários cristãos, o comunismo vai nos matar também, logo, você não é cristão por querer qualquer coisa parecida com alguns temas da esquerda” o mesmo valendo para a Direita também (“você não pode querer um estado mínimo porque Jesus queria a repartição dos bens”; “ser conservador faz de você um cristão falso”). Percebam que além da arrogância e uma espécie estranha de ousadia em querer ditar quem é e quem não é salvo, os critérios para essa salvação não são a Fé na obra perfeita de Cristo como ponte de reconciliação entre nós e o Deus trino, os critérios são simples e puramente políticos e ideológicos. É uma heresia que várias vezes os apóstolos lutaram contra: a obra no lugar da graça de Deus (como em 1 Tm. 6:3; Ef. 4:4). Deixarei alguns links de textos de teólogos e pastores sérios que falam sobre esse perigo de cair nessa tentativa de legalismo causado pelas tais “cosmovisões cristãs”.
É só olhar na Bíblia, nossa regra de fé e prática: quantos dos seguidores de Cristo, profetas e apóstolos namoraram com o Império? A igreja primitiva tinha realmente tanto poder político a ponto de ditar as regras do jogo? Será que foi em concordância com os governos, sistemas políticos que grandes homens e mulheres de Deus morreram em nome de Cristo, sendo torturados, crucificados, queimados, decapitados?
A gente não faz ideia do que é perseguição, os nossos irmãos e irmãs em outros países, estes sim sabem e nem por isso fugiram dessa perseguição ou montaram um complexo forte político e econômico para calar os perseguidores. Montamos esse discurso paranoico dentro de uma realidade que nos diz o completo contrário para, talvez, aliviarmos a culpa de que no lugar de Cristo, os deuses da Igreja (cristã, em geral) aqui no país são na verdade o dinheiro, o poder e a glória.
A gente aceitou a proposta do Diabo ali no deserto porque o estilo de vida de Cristo é muito difícil para nós. É muito difícil admitir, por exemplo, que o grande problema da derrocada da instituição do casamento na sociedade não é por problemas de fora ou a militância LGBT, mas sim porque os cristãos evangélicos, por exemplo, batem recorde em número de divórcios, que inclusive são naturalizados dentro do seio da igreja; porque a tentação da traição, assédio e estupros maritais são naturalizados e porque muitos conselhos de líderes à mulher abusada é de que a culpa de tudo é dela, é falta de oração, é falta de fé. É difícil admitir que a culpa da queda da ideia de família tradicional não é de grupos externos, mas da hipocrisia de esposos que não amam, mulheres que não amam, filhos que não são amados e nossa energia sendo canalizada em lutas contra pessoas que têm na mente outro ideal de família no lugar de lutarmos pela restauração das nossas. É difícil para o evangélico médio brasileiro admitir que as pessoas talvez não queiram ouvir alguém pregando o evangelho no meio da rua porque a imagem que construímos na mente dessas pessoas é de que somos altos demais para a baixeza delas e não porque elas estão deliberadamente com o coração endurecido.
A gente cria o discurso da perseguição porque é duro demais perceber nosso pecado. Porque prantear, rasgar as vestes e chorar, como diz no livro de Tiago dá muito mais trabalho do que enriquecer, ganhar poder e usar desse poder para calar outras pessoas, que dizemos ser nossas inimigas.
Não digo aqui que a perseguição não virá, ela virá e nem que de alguma forma ela não existe. Não digo que não é verdade que seremos e somos, em muitas situações, ridicularizados por professarmos a Cristo e seu estilo de vida. Jesus nos dizia que seríamos bem-aventurados ao sermos perseguidos e mortos por seu nome, o apóstolo Paulo nos dizia que privilégio era ser perseguido em nome de Cristo. Tenho a impressão de que quanto mais marginais ao poder do estado, mais apegados ao poder de Deus e ser mais apegado ao poder de Deus nos faz vulneráveis a perseguições em nome desse Deus. Percebe como a lógica deveria ser outra? 
Enquanto não buscarmos ser o que Cristo gostaria que fôssemos enquanto igreja, nossa paranoia será um instrumento que blinda a podridão que habita em nós em nome de um discurso que garante que nossos “inimigos” ficarão quietinhos, para assim nos sentirmos mais santos.
O pecado mora mais embaixo.
Não é tempo de guerra contra as forças do mal, é tempo de arrependimento porque o pecado está dentro de cada um de nós.



Links dos textos e informações:














DISCIPULADO DESCOLONIZADO (POR EKEMINI UWAN)


O texto a seguir é uma tradução livre minha de um texto originalmente publicado no site Sistematic Theology da teóloga norte-americana Ekemini Uwan, inclusive incentivo você a dar uma passeada por ele e ver várias coisas incríveis sobre a conciliação da bíblia, teologia e da nossa negritude, tudo de forma equilibrada e bíblica.

Obs.: é de total responsabilidade da autora as opiniões, argumentos, escolha de conceitos aqui apresentados, mesmo eu concordando com o que foi expresso e, por esta razão, decidido publicar.

   

"A igreja nas colônias é a Igreja do povo branco, a Igreja do estrangeiro. Ela não chama o nativo para os caminhos de Deus, mas para os caminhos do homem branco, do mestre ou do opressor. E, como você sabe, nesta matéria, muitos são chamados, mas poucos escolhidos. "Fanon, Wreched of The Earth (42)
Embora o corpo de trabalho anticolonial de Fanon tenha sido escrito no século XX e no contexto colonial argelino, suas palavras ressoam no século XXI, particularmente no que diz respeito aos contextos brancos das igrejas evangélicas e multiétnicas da América. É um fato lamentável que a igreja foi o principal veículo através do qual a colonização se espalhou no continente africano e além dele. Atualmente, muitas igrejas evangélicas brancas continuam seguindo os passos de seus ancestrais, plantando igrejas em áreas urbanas no país que se assemelham às colônias.
É verdade que Jesus Cristo nosso Senhor nos ordenou, dizendo: "Ide, pois, e fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo o que eu vos ordenei "(Mateus 28: 18-19). Mas as questões que nos envolvem são estas: quais tipos de discípulos estão sendo feitos? As mentes e as vidas desses discípulos urbanos refletem um batismo de fé no homem-Deus palestino marginalizado, de pele escura, Jesus Cristo, que foi espancado e pendurado nu naquela cruz escarpada no Calvário? Ou o seu batismo reflete a fé em um Jesus capitalista branco, vestido com um blazer Polo, cáquis e mocassins? Há consequências graves para quem adorar o último, que não é mais do que um ídolo (Êxodo 20: 3-4), e discipular pessoas de cor para fazer o mesmo.
Dada a onipresença da supremacia branca nessa nação e o papel da igreja na perpetuação no passado e presente, chegou a hora da igreja implementar o discipulado descolonizado : resgatar pessoas de cor do desprezo pela pele, cabelo, corpo e cultura e trazê-los para o deleite e amor por quem Deus os criou para serem ontologicamente. O discipulado descolonizado honra Deus como o sábio Criador, ao mesmo tempo em que insta os crentes negros a se adequarem à imagem de Cristo através da obra habitacional do Espírito Santo.

O QUE É COLONIZAÇÃO?

A colonização é um processo violento pelo qual os colonizadores invadem a terra dos nativos, a fim de expulsá-los e saqueá-los através de estupro, genocídio e outros atos flagrantes contra os povos indígenas. Aqueles que sobrevivem são oprimidos, recrutados para a cidadania de segunda classe e trabalho forçado em suas próprias terras devido à implementação do racismo [e etnocentrismo] sistêmico.
 Outro aspecto da colonização, relacionado à nossa discussão aqui, exige a degradação da cultura, língua, costumes e personalidade dos nativos. "No contexto colonial, o colonizador termina seu trabalho de desestruturar o nativo quando o último admite alto e inteligivelmente a supremacia dos valores dos homens brancos" (Fanon, 43). Consequentemente, as mentes dos oprimidos foram colonizadas ao ponto de internalizarem essa ideologia colonialista da supremacia branca e começarem a detestar a si mesmos, suas culturas e suas tradições, simplesmente porque  são suas. A colonização é inerentemente violenta. Aqueles que não foram abatidos pelo genocídio são deixados para descobrir que uma guerra psicológica foi travada em suas mentes no momento em que os passos dos colonos marcaram o solo sanguíneo de sua terra natal. Esta é a psique da mente colonizada:

DISCIPULADO COLONIZADO

No que diz respeito aos crentes [de cor] sendo discipulados em um contexto urbano [ou seja, os que não são da colônia invadida por colonizadores, grifo meu], as mentes desses jovens discípulos podem ter uma aparência estranha à mentalidade colonial de nativos cuja terra foi colonizada. Ao contrário dos nativos colonizados, os discípulos urbanos são treinados, de forma implícita e explícita, para desprezar sua própria cultura, tradições e aparência. Implicitamente, eles são ensinados que apenas homens brancos têm "teologia sólida", porque esses são os únicos teólogos lidos e citados pelo discípulo urbano. Explicitamente, eles são informados de que suas adorações exuberantes são muito emocionais, o estilo de se vestir é muito escandaloso; que a música que eles escolhem para ouvir, seja ela de hip-hop cristão ou não, é irrelevante; que o seu domínio fluente do inglês vernáculo afro-americano é não refinado e simples; que seus corpos são apenas valiosos na medida em que podem ser fetichizados e objetificados. A negritude incorporada dos discípulos urbanos é tratada como algo a ser controlado, não deleitado.
As mulheres negras, em particular, sofrem o peso desta última afirmação, encontrando-se localizadas em uma objetificação constante, oscilando entre hipervisibilidade e invisibilidade. A hipervisibilidade mapeia as mulheres negras no que diz respeito à mercantilização de seus corpos, estereótipos sobre hipersexualidade, maneirismos, discurso e a infame imagem de   "negra brava" ["negra metida", grifo meu]. Essas falsas noções que alimentam a hipervisibilidade que as mulheres negras experimentam também criam a pré-condição para a invisibilidade, que é uma forma de exílio. As mulheres negras em sua individualidade são invisíveis precisamente porque são muito visíveis dentro do contexto branco da igreja evangélica ou multiétnica. Tudo o que é percebido sobre elas são as caracterizações fictícias projetadas em relação às suas personalidades.  
Uma maneira que isso se manifesta na igreja está na investida dos ensinamentos da masculinidade bíblica e da feminilidade. Esses ensinamentos são extra-bíblicos e centram-se nas normas brancas da classe média-alta, comunicando-se aos homens solteiros que eles devem procurar, desejar e perseguir uma esposa que incorpore as características de uma "mulher bíblica". Como consequência desse ensino legalista, as mulheres negras são implicitamente ensinadas a assimilar e aspirar à brancura. As mulheres negras dentro dos espaços das igrejas brancas e multiétnicas são sistematicamente eliminadas do rol de "casáveis", tornadas invisíveis por seus homólogos masculinos negros e não-negros porque não se encaixam no perfil branco e de classe média de uma "mulher bíblica".
A mente colonizada é um sinal revelador de que o discípulo urbano foi doutrinado com uma falsa teologia que deriva do Império em vez do Reino de Deus. A teologia do império é focada no temporal, sem consideração pelas coisas eternas, que não são vistas. Só serve ao interesse dos poderosos, mantém o status quo e perpetua a narrativa demoníaca da superioridade branca em relação àqueles que estão à margem. A teologia do império se mostra como um anjo de luz; Se mascara com um evangelho domesticado sem sacrifício, mas, interiormente, é um lobo voraz. Não exige nada de seus propagadores e tudo daqueles que estão à margem, a quem a teologia é dada. [A teologia do império] garante que o primeiro permaneça o primeiro e que o último permaneça o último.

Em contraste, a teologia do reino é governada por uma inversa inércia que mantém a eternidade em vista, onde o último é o primeiro (Mateus 20:16), os pobres em espírito e pobres no mundo são herdeiros do Reino (Mateus 5: 3; Tiago 2: 5), e todos, independentemente do status, cuidam do interesse dos outros (Filipenses 2: 4), amam o próximo como a si mesmos (Mt 22: 37-39), e amam Deus de corpo e alma através da habitação do Espírito que habilita os filhos e filhas do reino a matar o pecado (Mateus 22:37, Romanos 8:13, 12: 1). Consideremos Esther, que tinha uma escolha a fazer: ela continuaria "deixando pra lá", escondendo sua identidade étnica judaica para colher os benefícios terrenos da proximidade com Império e com o rei, ou abandonaria tudo, arriscando sua própria vida para revelar sua identidade étnica judaica,  e, assim, salvar seu povo do genocídio iminente? Através da providência de Deus e do ato de solidariedade de Esther com seu povo contra o Império, a trajetória da história redentora continuou sem cessar, dando lugar ao Rei dos Reis, ao advento de Jesus Cristo e à inauguração de Seu reino.

O QUE É A DESCOLONIZAÇÃO?

 "A descolonização é o encontro de duas forças, opostas umas às outras por sua própria natureza ..." o último será o primeiro e o primeiro, o último" (Fanon. p. 36, 37)
A descolonização é a prática desta frase. Assim como a colonização, a descolonização envolve dois aspectos no trabalho simultaneamente: a primeira é a descolonização da mente, que começa por questionar a questão colonial. O segundo aspecto é quando os nativos ativamente transformam a estrutura colonial, de modo que os nativos, uma vez colonizados, ganham sua independência.
Como mencionado anteriormente, a colonização é um processo violento, e o seu inverso, descolonização, é igualmente violento. As mentes dos nativos são colonizadas quando internalizam sua opressão, tornam-se auto-odiantes, acreditam que são inferiores ao colonizador e concordam com sua colonização, vendo-a como uma virtude em vez de vê-la como uma ilusão das profundezas do inferno . A antítese da mente colonizada é a mente descolonizada; O último é o lugar do nosso interesse. A descolonização da mente não é alcançada através da osmose. Não ocorre organicamente e não é passiva. A descolonização é sempre ativa, intencional e requer resistência contra a estrutura colonial de subjugação. A colonização - como qualquer outro pecado - não acaba com o tempo;

DISCIPULADO DESCOLONIZADO

A supremacia branca é um projeto global. Consequentemente, a América é uma nação supremacista branca como função dessa realidade; e isso significa que nós, pessoas de cor, tivemos nossas mentes colonizadas em graus variados. Através do nosso sistema educacional, seja privado, público ou escolar em casa; através da mídia, da doutrina e da iconografia nas igrejas, todos nós absorvemos uma mensagem de desdém pela nossa melanina, corpos e cultura. É por isso que a descolonização deve ser uma parte essencial do discipulado.

Podemos começar a descolonizar o nosso discipulado primeiro lembrando que o cristianismo é uma religião orientalPortanto, devemos ser intencionais sobre aprender sobre a história da igreja e como o evangelho criou raízes na África, Ásia e no Oriente Médio. Dolorosamente, é um fato pouco conhecido que a Igreja etíope  foi um ímpeto para a Reforma Protestante. [Também é importante] ler comentários bíblicos, livros, artigos e teologia escritos por mulheres e homens que são nativos e descendentes da África e do Oriente Médio, e que são a configuração histórica da Bíblia; homens e mulheres como Tokunboh Adeyemo, Mignon Jacobs e Judy Fentress Williams. Devemos também sentar-nos aos pés de nossos irmãos e irmãs asiáticos e latino-americanos, para que possamos alcançar a universalidade da igreja, que permanecerá fora do nosso alcance enquanto a mentalidade colonial persistir.

 Em segundo lugar, precisamos avaliar se a teologia que subscrevemos em nossas igrejas deriva do Reino ou do Império. Aqui estão algumas perguntas para se fazer: esta teologia me chama para um amor profundo por Deus que me faz perseguir a santidade e o amor radical para o meu próximo? Esta teologia beneficia os privilegiados à custa dos marginalizados? Esta teologia é uma boa notícia para todos, independentemente do seu status racial e socioeconômico? Essa teologia me faz olhar no espelho e me maravilhar com a obra de Deus em vez de desprezar meu reflexo? Quando eu fecho meus olhos e imagino Jesus, vejo um homem branco ou um palestino de pele marrom? Sua resposta a cada uma dessas questões indicará se você foi doutrinado pela teologia do Reino ou do Império.

Se tomarmos a colonização e a descolonização fora do campo da sociologia por um momento e pensarmos sobre eles em um sentido teológico, percebemos que todos nós fomos colonizados pelo pecado, sem exceção. Em Gênesis 3: 1, 4-5, vemos Satanás, o principal colonizador, enganar nossos primeiros pais, Adão e Eva. Em vez de pensar na vontade de Deus sobre eles, tomando domínio sobre a serpente (Gn 1: 26-28), Adão e Eva selaram sua colonização e a de sua posteridade quando comeram da árvore do conhecimento do bem e do mal, mergulhando a todos nós em pecado, morte e miséria.
Quando pensamos nas consequências eternas de nossas transgressões (Romanos 6:23), vemos que a colonização pelo pecado é realmente violenta. A descolonização é igualmente violenta, e essa foi a violência visitada no corpo de Jesus Cristo que, por sua própria vontade, estabeleceu a Sua vida para que não estivéssemos colonizados pelo pecado. Toda laceração, tortura, contusão e corte da coroa de espinhos embutidos em Sua cabeça foram suportadas por Jesus para nossa salvação - ou nossa descolonização - se você assim quiser entender. O Espírito Santo continua o trabalho de descolonização dentro de nós, capacitando-nos a matar o pecado interior, enquanto estamos renovando nossas mentes e sendo conformes à imagem de Cristo.

De forma análoga, nós devemos nos dar conta da supremacia branca em nosso empenho no discipulado, para que o discípulo urbano seja cuidado no corpo e na alma. O discipulador deve instruir o discípulo urbano vendo-o como uma alma encarnada cuja vida foi comprada pelo trabalho acabado de nosso Salvador encarnado, Jesus Cristo. Não somos gnósticos. Um salvador desencarnado não é salvador. Nas palavras do teólogo africano, Atanásio, "O que não é assumido não é redimido". Nossos órgãos são importantes. Nosso cabelo é importante. Nossa complexidade importa. Nossas características faciais são importantes. Nossa fisiologia é importante porque Jesus Cristo uniu a humanidade com Sua divindade. Nossos corpos e almas refletem a imagem do encarnado que está intercedendo por nós agora. A descolonização é um processo ao longo da vida; a corrida não é dada ao mais veloz, mas a quem persevera até o fim.





Texto escrito por Ekemini Uwan (no Twitter: @sista.theology ).
Você pode conferir o original aqui.



A liberdade dói, mas faz voar



Há um capítulo do livro “Os irmãos Karamázov” de Dostoiévski chamado “O grande Inquisidor”, que na verdade é um poema narrativo do personagem Ivan, um dos irmãos Karamázov. A história contada a partir dessa narração traz Jesus  voltando a terra nos tempos da Inquisição, sendo capturado pelo Inquisidor, e questionado sobre o porquê  não ter aceitado a proposta de Satanás no deserto, visto que a sua mensagem não parece ter feito tanto sucesso quanto a mensagem da Igreja (na época, medieval e cometendo todas aquelas atrocidades em Seu nome). Conclui dizendo que o Cristianismo, no sentido de sistema de crenças (e por assim dizer, sem a essência que é o Cristo), cresceu no mundo porque vendeu a ideia de escravidão de mentes e não da liberdade pregada pelo Messias.

É mais fácil estar preso do que ser livre.

Durante toda a minha vida eu vivi com a sensação constante de segurança. Eu realmente achava que tinha todas as respostas, eu nunca questionei nada do que me diziam ser a “Vontade de Deus” ou a visão dEle para mim e para toda a humanidade. Confiava plenamente que minha forma de ver a  vida, as pessoas e o relacionamento com Deus era acabada, fechada em círculo. Não precisava saber de mais nada.
Na verdade eu não tinha consciência das coisas que cria porque não sabia das outras visões, do que as pessoas achavam deste ou daquele assunto. Eu não tinha ideia de que existiam outras formas de ver o mundo fora as minhas formas.

Não é de se espantar que minha reação diante de certos paradigmas dentro do Cristianismo tenha sido violenta. Lembro-me perfeitamente bem quando uma pessoa contou para mim que determinado “pecado” na verdade não era necessariamente pecado de acordo com a Palavra (mais tarde lendo eu entendi que realmente não era), mas dependia muito do que a pessoa faria com aquilo. Lembro-me da revolta, das palavras ditas: “mas por que não contaram isso pra gente antes?”; da sensação de casa demolida, de orfandade. Pela primeira vez na minha vida eu tinha saído da completa sensação de segurança com meu cristianismo.
E à medida em que fui crescendo e me encontrando com pessoas que tinham a mesma profissão de fé, mas criam de outra forma, ou com pessoas que nem criam em Cristo, comecei a questionar cirurgicamente tudo em que acreditava e o resultado depois de cada análise dentro das escrituras, confrontando a mim mesma era sempre o mesmo: minha casa estava edificada sob a areia.

Quando olhei para a pluralidade espantosa que existe dentro do Cristianismo e para a assombrosa característica de olhar o texto sagrado sob diversas perspectivas e o quanto que isso é vital nas milhares de denominações e confissões cristãs, meu mundo caiu. Percebi que há anos, centenas de anos e talvez em toda a nossa história como Igreja, a nossa religião tenha sido resumida em ler a Palavra sob o nosso olhar e não em ter a Palavra como algo que nos lê.

Desde criança eu havia edificado minha casa, meu relacionamento com Deus e com o outro a partir das perspectivas de um sistema teológico, eclesiástico, litúrgico, filosófico e cultural, mas não a partir das perspectivas dEle, puramente. Cresci em um berço evangélico protestante, e apesar de ter ouvido desde sempre sobre Jesus, Moisés, Maria e Abraão, eu não internalizava nada além das frases prontas de ebd: “Jesus me ama”; “Moisés abriu o mar vermelho”; “Maria deu à luz pelo Espírto Santo”; “Abraão foi o pai da fé”, o que elas significavam? Eu não sabia, apenas seguia repetindo as mesmas frases prontas, os mesmos clichês de pregação, as mesmas visões culturais sobre qualquer coisa fora da igreja como se estivessem escritas na Bíblia.

Hoje tenho 21 anos, mas carrego no peito a mesma sensação insegura de quem pisa na areia movediça cada vez que percebo o quão grande que é a vida, o quão particular que é o ser humano, o quanto que cada um de nós é diferente um do outro.
Isaías disse dentro de um contexto de ruína de Seu povo: “Confiai no Senhor perpetuamente; porque o Senhor Deus é uma rocha eterna"(Isaías 26:4); ele sabia que certamente nada era seguro o suficiente para o acolher a não ser a certeza inabalável que Ele não muda.

No livro “O sagrado e o profano” de Mircea Eliade há uma afirmação interessante sobre a visão de mundo do homem religioso: ele quer um lugar fixo no mundo (ontológico e físico) para se sentir seguro. Acredito que assim como em “O grande inquisidor” nós tenhamos aprendido fatalmente o caminho mais fácil: somos cristãos convertidos pelo medo de olhar para a Palavra e realmente enxergar o que ela tem a dizer a nosso respeito. Temos medo de admitir que não sabemos dar respostas a certas problematizações que nem a bíblia se interessou em apresentar. Temos medo de olhar para todas as confissões de fé em Cristo que diferem de nós em assuntos periféricos e tentar entender porque assim pensam ou, até mais, olhar para os que não creem e tentar entender (o que não quer dizer, necessariamente concordar com sua visão) o seu ponto de vista sobre determinados assuntos. Fomos criados no medo de questionar aquele(a) que nos diz o que é vontade de Deus, de questionar a nós mesmos diante de situações-limite, de questionar a nossa própria leitura da Palavra.

O medo sempre fora o caminho mais fácil para a nossa religião, mesmo que isso significasse prisão, porque estar verdadeiramente livre na Verdade implica em carregar a cruz e seguir os passos de Cristo e nem sempre há tanta segurança em nós mesmos ou quem somos. Ser livre, por esta razão, é um estado de pura insegurança nos seus próprios conceitos de teologia, cultura, filosofia e ciência e completa entrega ao que Ele diz (ou ás vezes nem diz) sobre a angústia que é existir num mundo caído. Sabe o que isso pode nos dizer? Que tudo bem se você enquanto cristão diz que é “golpe” ou “impeachment” o que aconteceu com Dilma, não é isso que me modela como seu irmão e nem que desmancha o que Cristo fez por nós.

Se Mircea Eliade afirma em sua obra que a visão religiosa se constrói a partir do desejo do homem religioso estar sempre e constantemente seguro em um mundo cada vez mais relativista, eu prefiro não ser religiosa nesse sentido e abraçar a cruz, o que significa dizer que minhas verdades sobre a vida podem ser demolidas a qualquer momento, contanto que Ele diga sempre a Palavra final porque sei que o Senhor é a nossa Rocha Eterna e que um dia não precisaremos mais pisar em areias movediças.