Páginas

Sobre as flores



Flores têm cheiro de morte. 
E a morte é o cenário preponderante do cotidiano. 
Nós, nesse meio todo, somos flores que nascem à beira do esgoto. Plantinhas verdes-oliva que brotam do concreto do apartamento descascado. O prédio tédio de Leminski. 
Nós cheiramos a morte, porém como botões de rosa, corajosos, resistimos. 
Talvez nem tanto.
Talvez apenas existamos pra sermos cheirados por outros, trazermos um pouco de beleza pro dia. 
Depois a gente murcha, devagarinho, 
sem pressa.
Ninguém nota. 

Quando temos sorte, somos lembrados por alguém. As flores do velório.


O vizinho do lado deixou de existir. Trouxeram-lhe flores, mas ele não cheirou. A rua toda, nessa cidadezinha, ficou a lamentar. Tão jovem que era o rapaz... Tinha filhos... Trabalhador honesto. Mas definhou . Lutava contra uma doença grave.
Imagino eu que o momento em que apagou a luz dentro de si, suspirou de alívio. Ali era o fim da dor, sorriu pra o céu. 
Deixou o fardo pesado. 
Tatuou sua vida nos corações de quem amou no mundo, no sorriso resistente da sua esposa, no abraço apertado dos filhos, nos olhos doces de sua mãe... 
Tatuou seu nome à tinta. Mas tinta se apaga. 

Passou-se um mês e parece que o mundo não entendeu que o vizinho do lado partiu. 
Não vejo ninguém chorando, não vejo ninguém de preto, não vejo cantorias fúnebres em sua homenagem. Eu não estou de preto. Nem ao menos sabia seu nome.

O meu vizinho murchou.
Devagarinho.
Sem pressa.

E Ninguém notou.


LER AO SOM DE HEALAH DANCING - KEATON HENSON (FEAT. REN FORD)

O confronto bélico das cores

Ilustração do artista polonês Pawel Kuczynski


Maria do Socorro tem trinta e três anos, quatro filhos e uma gastrite nervosa.
O motivo do nervoso vem dos olhos.
Razão pra chorar, ela tem.
Nasceu nas ruas, sentindo o cheiro do esgoto, comendo o que dava pra engolir do que tinha no lixo da padaria, fumando as bitucas manchadas de batom que jogavam no chão. Carrega o legado de uma família inteira vivendo do asfalto. A dor parece até ser herança genética.
Sua mãe a criou junto com cinco meninos, cada um de um pai. Maria não conhece o dela até hoje. O mundo cresceu, deu voltas, e cada um de seus irmãos seguiu seu rumo, ainda sentindo o peso de não pertencer a lugar algum. A mãe morreu de uma doença que só pobre tem, quando ela ainda era adolescente. Maria do Socorro então começou a vender o corpo. Estranho era saber que o senhor gordo proprietário da padaria mal olhava pra ela pelo dia, e na noite se chegava como seu dono. Estranho era sentir um buraco dentro do peito, toda vez que alguém a tocava.
Hoje, essa praça em que mora, está cheia de pessoas com cartazes. Gente que ela nunca viu circular por ali. Jovens brancos, barbudos, bonitos... Meninas de pele hidratada, com óculos de sol. Eles se dividem por ali, uns estão de vermelho e gritam por nomes que Maria não conhece; outros estão de azul, falando não sei de quê de Polícia Militar. Tem alguma coisa acontecendo. O pessoal da praça se aglomera pra comentar o que pode ser aquilo.
Hoje, Maria soube que seu irmão morreu em algum lugar da cidade. O choro lhe brota dos olhos, mas ela seca as lágrimas. É feio chorar. É feio se despir e ficar nua assim na frente dos outros.
Enquanto isso os dois grupos se enfrentam, vermelho e azul se misturam numa cor feia que só existe quando não há paz. Maria continua chorando, seus filhos estão ao seu redor, tentando consolá-la. A guerra termina. Azul e Vermelho vão se separando, e pouco a pouco, saindo da praça em carros.


A paz da guerra roxa, vinda do confronto bélico entre cores, é instaurada. Mas o buraco no peito do coração de Maria do Socorro, de trinta e três anos, quatro filhos e uma gastrite nervosa, continua tão grande quanto a fome de todos os seus amigos de praça.

LER AO SOM DE: EU CONFESSO - O TERNO