Ilustração do artista polonês Pawel Kuczynski |
Maria do Socorro tem trinta e três anos, quatro filhos e uma
gastrite nervosa.
O motivo do nervoso vem dos olhos.
Razão pra chorar, ela tem.
Nasceu nas ruas, sentindo o cheiro do esgoto, comendo o que
dava pra engolir do que tinha no lixo da padaria, fumando as bitucas manchadas
de batom que jogavam no chão. Carrega o legado de uma família inteira vivendo
do asfalto. A dor parece até ser herança genética.
Sua mãe a criou junto com cinco meninos, cada um de um pai.
Maria não conhece o dela até hoje. O mundo cresceu, deu voltas, e cada um de
seus irmãos seguiu seu rumo, ainda sentindo o peso de não pertencer a lugar
algum. A mãe morreu de uma doença que só pobre tem, quando ela ainda era
adolescente. Maria do Socorro então começou a vender o corpo. Estranho era
saber que o senhor gordo proprietário da padaria mal olhava pra ela pelo dia, e
na noite se chegava como seu dono. Estranho era sentir um buraco dentro do
peito, toda vez que alguém a tocava.
Hoje, essa praça em que mora, está cheia de pessoas com
cartazes. Gente que ela nunca viu circular por ali. Jovens brancos, barbudos,
bonitos... Meninas de pele hidratada, com óculos de sol. Eles se dividem por
ali, uns estão de vermelho e gritam por nomes que Maria não conhece; outros
estão de azul, falando não sei de quê de Polícia Militar. Tem alguma coisa
acontecendo. O pessoal da praça se aglomera pra comentar o que pode ser aquilo.
Hoje, Maria soube que seu irmão morreu em algum lugar da
cidade. O choro lhe brota dos olhos, mas ela seca as lágrimas. É feio chorar. É
feio se despir e ficar nua assim na frente dos outros.
Enquanto isso os dois grupos se enfrentam, vermelho e azul
se misturam numa cor feia que só existe quando não há paz. Maria continua
chorando, seus filhos estão ao seu redor, tentando consolá-la. A guerra
termina. Azul e Vermelho vão se separando, e pouco a pouco, saindo da praça em
carros.
A paz da guerra roxa, vinda do confronto bélico entre cores,
é instaurada. Mas o buraco no peito do coração de Maria do Socorro, de trinta e
três anos, quatro filhos e uma gastrite nervosa, continua tão grande quanto a fome de todos os seus amigos de praça.
LER AO SOM DE: EU CONFESSO - O TERNO
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