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quinta-feira,
de

Chiaroscuro


Dez horas da noite em uma cidade pequena, em plena copa do mundo. Tem um jogão acontecendo na pequena tv do bar, mas há poucas pessoas assistindo, entre bêbados e mulheres fumantes. A rua, sobrevivente de uma chuva forte, escorre sua lama de esgoto pelos poros não corrigidos pela prefeitura, e eu piso numa dessas poças. 
As bandeirinhas verde e amarelas, pobres bandeirinhas molhadas, vistas sob esse aspecto não são tão brilhantes e alegres como nos comerciais de cerveja. Minha rua continua a mesma. 
Há uma flâmula do Brasil já desgastada, sendo agitada pelo vento frio. Eu tomo a chuva na alma e aquilo me limpa de tal forma que vejo tudo claro, apesar da aparente sujeira. 
Marcam um gol, acho que foi alguma seleção do leste europeu, um bêbado se levanta e comemora, esmurrando o ar com certa raiva. Eu sorrio. 
Amanhã me acordarei no mesmo horário, amanhã comerei no mesmo horário, amanhã gastarei mais um dia, e amanhã tem jogo.
Amanhã alguém morrerá, amanhã alguém protestará e será reprimido, amanhã a mídia não vai falar de outra coisa a não ser o novo corte do jogador tal, amanhã alguém nascerá, amanhã alguém chorará, sorrirá, cantará, fará aniversário...
Amanhã essa minha rua vai receber nas suas poças de água suja a cristalização do sol e esse pobre bar ficará com o reboco desgastado pela chuva. Gritarão gol com sorrisos cheios de dentes e bafos de cachaça, se abraçarão suados, dizendo que a vida é bonita, no paradoxo cenário de rotina miserável.