Há
um capítulo do livro “Os irmãos Karamázov” de Dostoiévski chamado “O grande
Inquisidor”, que na verdade é um poema narrativo do personagem Ivan, um dos
irmãos Karamázov. A história contada a partir dessa narração traz Jesus voltando a terra nos tempos da Inquisição, sendo
capturado pelo Inquisidor, e questionado sobre o porquê não ter aceitado a proposta de Satanás no
deserto, visto que a sua mensagem não parece ter feito tanto sucesso quanto a
mensagem da Igreja (na época, medieval e cometendo todas aquelas atrocidades em
Seu nome). Conclui dizendo que o Cristianismo, no sentido de sistema de crenças
(e por assim dizer, sem a essência que é o Cristo), cresceu no mundo porque
vendeu a ideia de escravidão de mentes e não da liberdade pregada pelo Messias.
É
mais fácil estar preso do que ser livre.
Durante
toda a minha vida eu vivi com a sensação constante de segurança. Eu realmente
achava que tinha todas as respostas, eu nunca questionei nada do que me diziam
ser a “Vontade de Deus” ou a visão dEle para mim e para toda a humanidade. Confiava
plenamente que minha forma de ver a vida, as pessoas e o relacionamento com Deus
era acabada, fechada em círculo. Não precisava saber de mais nada.
Na
verdade eu não tinha consciência das coisas que cria porque não sabia das
outras visões, do que as pessoas achavam deste ou daquele assunto. Eu não tinha
ideia de que existiam outras formas de ver o mundo fora as minhas formas.
Não
é de se espantar que minha reação diante de certos paradigmas dentro do
Cristianismo tenha sido violenta. Lembro-me perfeitamente bem quando uma pessoa
contou para mim que determinado “pecado” na verdade não era necessariamente
pecado de acordo com a Palavra (mais tarde lendo eu entendi que realmente não
era), mas dependia muito do que a pessoa faria com aquilo. Lembro-me da
revolta, das palavras ditas: “mas por que não contaram isso pra gente antes?”;
da sensação de casa demolida, de orfandade. Pela primeira vez na minha vida eu
tinha saído da completa sensação de segurança com meu cristianismo.
E
à medida em que fui crescendo e me encontrando com pessoas que tinham a mesma
profissão de fé, mas criam de outra forma, ou com pessoas que nem criam em
Cristo, comecei a questionar cirurgicamente tudo em que acreditava e o
resultado depois de cada análise dentro das escrituras, confrontando a mim
mesma era sempre o mesmo: minha casa estava edificada sob a areia.
Quando
olhei para a pluralidade espantosa que existe dentro do Cristianismo e para a assombrosa
característica de olhar o texto sagrado sob diversas perspectivas e o quanto
que isso é vital nas milhares de denominações e confissões cristãs, meu mundo
caiu. Percebi que há anos, centenas de anos e talvez em toda a nossa história
como Igreja, a nossa religião tenha sido resumida em ler a Palavra sob o nosso olhar
e não em ter a Palavra como algo que nos lê.
Desde
criança eu havia edificado minha casa, meu relacionamento com Deus e com o
outro a partir das perspectivas de um sistema teológico, eclesiástico,
litúrgico, filosófico e cultural, mas não a partir das perspectivas dEle,
puramente. Cresci em um berço evangélico protestante, e apesar de ter ouvido
desde sempre sobre Jesus, Moisés, Maria e Abraão, eu não internalizava nada
além das frases prontas de ebd: “Jesus me ama”; “Moisés abriu o mar vermelho”; “Maria
deu à luz pelo Espírto Santo”; “Abraão foi o pai da fé”, o que elas
significavam? Eu não sabia, apenas seguia repetindo as mesmas frases prontas,
os mesmos clichês de pregação, as mesmas visões culturais sobre qualquer coisa
fora da igreja como se estivessem escritas na Bíblia.
Hoje
tenho 21 anos, mas carrego no peito a mesma sensação insegura de quem pisa na
areia movediça cada vez que percebo o quão grande que é a vida, o quão
particular que é o ser humano, o quanto que cada um de nós é diferente um do
outro.
Isaías
disse dentro de um contexto de ruína de Seu povo: “Confiai no Senhor perpetuamente; porque o Senhor Deus é uma rocha eterna"(Isaías 26:4); ele sabia que certamente nada era seguro o suficiente
para o acolher a não ser a certeza inabalável que Ele não muda.
No
livro “O sagrado e o profano” de Mircea Eliade há uma afirmação interessante
sobre a visão de mundo do homem religioso: ele quer um lugar fixo no mundo
(ontológico e físico) para se sentir seguro. Acredito que assim como em “O
grande inquisidor” nós tenhamos aprendido fatalmente o caminho mais fácil:
somos cristãos convertidos pelo medo de olhar para a Palavra e realmente
enxergar o que ela tem a dizer a nosso respeito. Temos medo de admitir que não
sabemos dar respostas a certas problematizações que nem a bíblia se interessou
em apresentar. Temos medo de olhar para todas as confissões de fé em Cristo que
diferem de nós em assuntos periféricos e tentar entender porque assim pensam
ou, até mais, olhar para os que não creem e tentar entender (o que não quer
dizer, necessariamente concordar com sua visão) o seu ponto de vista sobre determinados assuntos. Fomos criados no medo de questionar aquele(a) que nos
diz o que é vontade de Deus, de questionar a nós mesmos diante de
situações-limite, de questionar a nossa própria leitura da Palavra.
O
medo sempre fora o caminho mais fácil para a nossa religião, mesmo que isso significasse prisão, porque estar
verdadeiramente livre na Verdade implica em carregar a cruz e seguir os passos
de Cristo e nem sempre há tanta segurança em nós mesmos ou quem somos. Ser livre, por esta razão, é um estado de pura insegurança nos seus
próprios conceitos de teologia, cultura, filosofia e ciência e completa entrega
ao que Ele diz (ou ás vezes nem diz) sobre a angústia que é existir num mundo
caído. Sabe o que isso pode nos dizer? Que tudo bem se você enquanto cristão
diz que é “golpe” ou “impeachment” o que aconteceu com Dilma, não é isso que me
modela como seu irmão e nem que desmancha o que Cristo fez por nós.
Se
Mircea Eliade afirma em sua obra que a visão religiosa se constrói a partir do
desejo do homem religioso estar sempre e constantemente seguro em um mundo cada
vez mais relativista, eu prefiro não ser religiosa nesse sentido e abraçar a cruz,
o que significa dizer que minhas verdades sobre a vida podem ser demolidas a
qualquer momento, contanto que Ele diga sempre a Palavra final porque sei que o
Senhor é a nossa Rocha Eterna e que um dia não precisaremos mais pisar em
areias movediças.