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Moça

Ela veste avental,
avental molhado de água suja. 
Seus cabelos são belos, 
mas estão presos e desarrumados.

Ama cinema, 

moda e decoração, 
mas quase ninguém escuta
o que diz seu coração. 

Ela doa sangue todos os dias. 

Litros e litros. Suas mãos tremem de fraqueza.
Doa vida aos seus sanguessugas.
Ela os ama. 

Mas eles não querem os seus olhos brilhantes, 

não querem ouvir suas músicas, suas piadas, 
eles não querem a sua liberdade, 
as suas gargalhadas...

O que eles querem é sua submissão, 

sua voz baixa, seus olhos no chão.
Eles querem falar em tom mais alto, 
querem os ouvidos sempre atentos, 
e sua sensibilidade para abraços. 

Ela não tem tempo para tirar seu avental.

Deseja voar, sair dali...
Deseja ter outra coisa para vestir. 
Ela tem vontades, tem desejos, 
tem sonhos.

As lágrimas são as únicas armas,

mas ela tem que chorar baixinho, 
água quente para as mãos cansadas, 
orando ao seu Deus carinho. 

Moça de avental, quem dera ter no meu abraço

a fuga pra tua dor! 
Iria viver te afagando,
como se quebrando teus grilhões.

Moça de avental, quem dera doar-te

um pouco de vida, 
uns olhos altivos e vivos,
e, quem sabe, se possível
um mundo mais amigo...


Segunda-feira

   

    Quatro horas da manhã e alguns minutos. Não dava pra enxergar muito bem, principalmente para alguém que estava acordando naquele exato momento como Adriana e com a visão embaçada. Ao tentar checar o horário, esticou os braços por cima do marido, que dormia ao seu lado, para alcançar o objeto que estava na cabeceira na outra extremidade da cama. João estava atrapalhando com sua barriga de casado. Casado há mais de vinte e cinco anos. 

     Não era um dia excepcional, não. Era segunda-feira. Adriana tinha muitas coisas a fazer. Levantou-se e mecanicamente foi ao banheiro, lavou o rosto, olhou-o. Velha. Estava velha e com os olhos cansados. Arrastava a perna esquerda, seus ossos doíam... Mas tinha roupa pra lavar, almoço pra fazer, casa pra cuidar. 
   João era um bom homem: não bebia muito, não fumava. Caminhoneiro, mãos grossas, andar duro, olho vivo. De vez em quando, quando dava, os dois iam ao bar do Carlito dançar um forró. Era uma vidinha humilde, de gente de interior... Adriana nunca trabalhara por João não aceitar, e tinha estudado até a quarta série, mas dava umas ajudas com umas roupas que lavava. 
   Tiveram filhos muito jovens, e fora esse o motivo de terem casado cedo. João Filho, Marilene, Maria Joaquina e Josué compunham os quatro filhos do casal. Maria Joaquina e Josué, respectivamente, dezoito e quinze, moravam com os dois. João Filho e Marilene já tinham suas vidas. Maria, casada e diarista, João, motorista e solteiro. 
    Adriana via seus filhos mais velhos periodicamente, sentia saudades, mas sabia que tinha que ser assim. Sua relação com o marido era sólida o suficiente para não ter aquela preocupação de amor. Se o amava? A mulher nem tinha tempo pra pensar nisso. Só tinha tempo para esfregar as roupas, sacolejar suas carnes pelo esforço, branquear suas mãos negras com a espuma do sabão. Cuida logo, Adriana. Teu homem sai cedo, ele tem que comer. Ela prepara um café forte, um cuscuz com carne como todo nordestino gosta e, com um sorriso de mãe, coloca á mesa. Liga o rádio, ouve umas músicas, sai cantando. 
    Alta no dólar? Maria nem sabia do que se tratava, só sabia que o real tava em baixa em sua vida, e sorria, sorria com aquela felicidade de gente sincera. Não havia ambições altas, só queria um colchão melhor pra descansar as costas velhas e os pés rachados. Seu mundo era sua pequena casa, seus afazeres domésticos... Sua poesia era a rua, as gentes que conversava todos os dias.
    O homem se levanta. Come como se tivesse raiva. Adriana sorri pra si mesma e pensa na tarde que o conheceu. O rádio anuncia que o Brasil está numa nova fase, que os pobres, que os pretos estão mais inclusos... João se levanta falando alguma coisa com sua voz de trovão. Adriana, por sua vez, vai desligar o fogo e secar suas mãos frias da água, água esta que sempre a acompanhou por essa vida pequena, por essa vida injusta, por essa vida que se fez feliz em vassouras, suor e sorrisos cheios de dentes. 

LER AO SOM DE: SIMPLICIDADE - PATO FU

Então? Já virei adulta? (Atenção: este é um texto confuso. É sério.)




    Simultaneamente as coisas vão acontecendo. Um dia você tem doze anos, assiste High School Musical e acha o máximo, em outro você simplesmente acorda querendo ler Dostoiévski... E com dezoito na cara. Sabe o que é confuso? O que a gente acaba fazendo com as etapas da vida. É como se fizéssemos prateleiras, catalogadas, devidamente classificadas: "De 1 á 9, criança; de 9 a 13, pré-adolescente; de 13 á 17, adolescente..." 
   Certo. A boquinha acabou. Não sou mais uma adolescente segundo nossa regra e... Para mim, apesar de algumas mudanças, não me sinto, em nada, uma adu... (difícil até de escrever) adulta. 
Este é meu último ano no colégio (tempo para lágrimas), primeira vez em vestibular, mistura de sentimentos, pouca confiança, medo do futuro, em construção de personalidade, de gostos, de metas... Enfim! Uma mistura. 
     A gente cresce com aquele conselho pronto que a escola dá, que a família dá: "Seja alguém na vida"mas... O que seria verdadeiramente o sentido de SER alguém? 
Se o critério for entrar no colégio, passar no vestibular e conseguir o emprego, respectivamente, eu tô tentando satisfazer essa ação social de valor tradicional.
Mas... E depois? 
Vou voltar pro colégio, passar em outro vestibular e conseguir outro emprego? 
Vou me casar com o primeiro que aparecer? Vou ter dez filhos para me ocupar e montar uma canoa pra atravessar o oceano? Ou tentar minha vida no funk lançando vídeos no youtube?
    Tudo bem, eu tô ouvindo música melhor hoje em dia, tô tentando ler Dostoiévski, finalmente entendi a diferença entre revolta e revolução e acho que tenho uma posição política formada. Mas isso não quer dizer que eu tenha amadurecido, que eu esteja pronta para o mundo, que eu não tenha medo do que irá acontecer, que eu me enxergue como adulta. 
   Pra falar a verdade nem sei se existem adultos. No fundo sinto que vou ter essas incertezas para sempre, mesmo com um emprego fixo, sendo mãe, esposa, carregando pastas... Sempre vou me sentir como uma criança que acaba de dormir sozinha pela primeira vez. E com a porta fechada. 
É assim mesmo? Eu já sou adulta, então?
Ok. Então sou adulta. Fique ereta, Thaínes. Respire dez vezes antes de uma decisão. Chegue meia hora antes do marcado. Não abra mão do salto alto, hein? E... Ah, antes que me esqueça: pegue um bloquinho e vá fazendo as contas do que falta na feira. 



LER AO SOM DE: O MUNDO É UM MOINHO - CARTOLA