Páginas

Olhos Afogados

OBS: Fragmento do livro Ponte de Dezembro, que estou escrevendo.


Eram dez e quarenta e cinco, e como sempre André estava trabalhando no bar. Por lá passavam-se vários rostos, na maioria conhecidos da comunidade.
Sabia seus nomes, algumas informações a mais, mas não de fato suas vidas.

Alguns vinham com amigos, jogavam cartas, e saíam apoiados uns nos outros. Casais bebiam enquanto discutiam relações... Por várias vezes André viu rompimentos de namoros. Era triste, sempre admitiu, mas ficar de observador nessas horas tinha lá suas ironias. Vários moleques vinham mentir a idade em busca da bebida fermentada que viam na TV e era até engraçado negar e frustrar seus planos.
Mas já era fim de expediente, e André, pensativo ficou a observar o último bêbado do recinto. Um senhor de uns quarenta e tantos anos. Já tinha tomado inúmeras garrafas, os cabelos estavam bagunçados, olhos dormentes, o rosto manchado de uma maquiagem que aparentava ser de palhaço. Sua roupa era um tanto espalhafatosa. Lia-se naquela imagem que tinha perdido o emprego.
Aquilo lhe chamou a atenção.
Sempre pensara que os palhaços eram felizes e que nunca tinham momentos ruins. Talvez esse pensamento fosse infantil, mas tudo desmoronara naquele momento.
O homem de rosto manchado agora falava sozinho, resmungava palavrões e condenava o presidente da república. Dizia morar num país ingrato, murmurava contra todas as pessoas que tinha feito sorrir. De que adiantava agora? Onde estariam? Provavelmente em suas casas com empregos garantidos e carros conversíveis na garagem.

André estava profundamente comovido, na verdade não sabia o que fazer para ajuda-lo, ora, de que adiantaria conversar com um bêbado? Eram quase onze horas e precisava fechar o bar, mas antes... Antes tinha que falar com ele.

     - Moço... – Começou timidamente.
O homem parecia não ouvi-lo, estava mergulhado em seu mundo, preso á diálogos invisíveis.

     - Moço, desculpe... Mas – Continuou

     - Eu quero mais um litro de Vodca. – Respondeu com dificuldade.

     - O negócio é que eu vou ter que fechar agora. – Finalmente concluiu.

     - Eu sei meu rapaz, mas... Você entende o que é não querer voltar pra casa?

Os olhos do bêbado estavam afogados. Afogados em um mar de desespero, André via aquilo e lutava para não chorar com ele.
“Que situação.” Pensava ele. O que faria um homem não querer voltar pra casa? O que o faria desejar um bar de esquina como lar para suas descrenças e frustrações?
Se André não conversasse com aquele homem, provavelmente não dormiria a noite. E com preocupação sentou ao lado do tal com uma flanela em seu ombro esquerdo.

    - O senhor não quer limpar o rosto? – Disse estendendo o tecido.

    - Obrigado – Respondeu já limpando o rosto. – Não quer me acompanhar com a Vodca?

Ele não estava tão fora de si quanto pensava.   

    - Não. Eu não bebo. –Respondeu esfregando as mãos.

    - Que estranho. Um rapaz que trabalha em um bar não beber   – disse rindo - Grande ironia.

    - É estranho também se ter um palhaço chorando – Respondeu com um sorriso tímido.

    - Eu não sou palhaço. Pelo menos não mais. – Disse com franqueza.

André já tinha concluído que ele perdera o emprego.

    - O que aconteceu? – Perguntou com receio. – Você perdeu o emprego?

    - Não era simplesmente o emprego; era na verdade minha vida. À anos faço as pessoas sorrirem em um circo profissional, mas o egoísmo humano é miserável.- Dizia isso enquanto quase quebrava o copo.
Sem a maquiagem manchada não era tão velho quanto aparentava. Acho que uns trinta e nove anos lhe cairiam bem.

   - E o que levou você a perder o emprego? – Insistia André.

   - O Circo não estava indo tão bem financeiramente. Os donos simplesmente tomaram toda a grana arrecadada, e vendo que estavam prestes a falir, sumiram, deixando todos os profissionais da área... Assim como eu – Respondeu com vergonha.

   - Mas isso é crime! Vocês deviam denunciar. – Complementava André com ira.
O bêbado (Não tão bêbado) agora ria sarcasticamente. André entendia o porquê.

   - Aqui nesse país não tem vez pra pobre. Você deve saber disso. Os caras devem estar á essas horas em Madrid ou Paris... De que adianta denunciar?
André pensava e revoltava-se contra o sistema. Não era justo aquela situação. Em silêncio imaginava como seria a vida do rapaz daquele momento em diante. Tentava idealizar aonde iria depois dali. Percebera que possuía uma aliança. “É casado.” Pensou.

   - E onde você mora? – Perguntou.

   - Atualmente moro em tudo o que me parece uma casa. Sou do interior de Minas.
O sotaque denunciava isso.

   - Faz quatro anos que não vejo minha mulher e filhos... – Seus olhos novamente estavam afogados, como no início. – Junto dinheiro fazendo alguns bicos como palhaço nos semáforos para conseguir uma passagem pra casa, mas...

   - Mas...?

   - Mas ao mesmo tempo, não quero que minha esposa me veja nesse estado deprimente. Eu saí de lá dizendo que iria voltar com muito dinheiro e que iríamos morar sossegados em BH. – Falava isso olhando para a aliança. – Sou formado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Belo Horizonte. Pretendia ter recursos para montar e produzir meu próprio espetáculo, para quem sabe sair por esse mundão afora espalhando arte e alegria junto com minha família. Mas esse país tem a mania de destruir nossos sonhos...
Aquela cena certamente nunca mais sairia da mente do rapaz André. Estava vendo muito além de suas quatro paredes internas, de seus problemas, concluíra a partir daquele momento que existiam muitos e muitos como aquele palhaço frustrado naquela cidade, provavelmente muito desses que esbarravam na avenida, e até no próprio bar.

   - Realmente está ficando tarde – Continuou o palhaço levantando-se e pagando a conta. – Tenho que ir embora agora rapaz.

André estava estático na verdade. Sentia-se impotente diante daquela situação.

   - Calma, calma... – Disse o rapaz percebendo que o homem ia embora. – E aonde você vai agora?

   - Não se preocupe comigo homem. Eu sei me virar – Respondeu com sinceridade. –E a propósito, obrigado por ter me ouvido. Hoje você me provou que a humanidade não está tão perdida como eu pensava.
E se foi, cambaleando pelo alto teor do álcool. André ficou ali naquela mesa, pensativo e estático. Provavelmente nunca mais o veria novamente. E o pior de tudo, não sabia nem seu nome.
Levantou-se e começou a limpar as mesas com certa tristeza e melancolia. E voltando para aquela mesa, junto com o dinheiro da conta, viu escrito no guardanapo:

“Francisco Lopes.
87452109”

0 comentários:

Postar um comentário